segunda-feira, 18 de maio de 2009

Curto espaço de um tempo perdido

As horas passam, o sol cai e a noite entra em todo seu vigor em nossas vidas.
O chão treme a cada vez que a Terra gira, lagos, rios e mares vibram, ondulam conforme o movimento celeste.
Dança de astros! Fluxo planetário, uma rajada de acontecimentos, luzes, explosões, radiações!
E debaixo das águas do oceano, um mar pulsante de lava, ascendendo e à superfície e voltando ao seu centro, coração de magma, pulsões efervescentes, rizomáticas, multi-arteriais.
Em sua crosta, alguns caminhos, alguns túneis que exalam seu calor, seu deleite, sua criação e sua destruição, vulcões, erupções renovando a pele que recobre este mundo, nova pele sobre pele, e a baixa pele volta aos poucos, lentamente a seu interior, derrete, vira sangue rochoso, e sai novamente. Dinamismo sem igual, singular em seu estágio, em sua condição.
Aqui vivemos, nesta criatura chamada Terra, essa multi, toti, trans-entidade, tão viva como o menor dos insetos, conceber nossa vida sem ela, isso é de tamanha impossibilidade, pois apenas aqui tivemos a singularidade de sermos eu e você, quem o somos hoje.
Eu e você, você e eu, frutos desse ventre arbóreo e rochoso, tuas águas nos sustentam e tuas riquezas fazem nosso progresso, essa mãe volátil a seu tempo. Sinto o chão vibrar em uníssono, não só chão. Vibra terra, vibra mar, vibra rocha, vibra floresta, vibra animal, vibra humano. Tudo vibrando, tudo a seu tempo, de tão rápido em um singelo espaço que se foi, já vibrou, foi-se indo o tempo. As máquinas começaram a vibrar, as grandes fornalhas começaram a vibrar, a toxicidade começou a vibrar, o desencontro, a intriga, a ignorância, a insensibilidade começaram a vibrar...
Os animais começaram a ofegar, foram desvibrando, não são mais animais, são artifícios de cozinha, destino abate. As árvores começaram a secar, foram desvibrando, não são mais árvores, são madeira, lenha, encosto, destino corte. Os peixes começaram a sufocar, foram desvibrando, são ossadas no mar, destino podridão.
Mundo de ossos e troncos partidos, terra desolado, deserto sem sol, frio e negro, vibra morte, vibra esquecimento. Falta, falta vida, falta ar, falta água, falta. Grandes ruínas do homem aqui jazem, já não há sequer um crânio vivo, tudo exterminado, tudo em estado de desvibramento, desmembramento.
O planeta desvibrou, seu sangue rochoso foi endurecendo, seu fluxo comprometido, suas aberturas fechadas por lixo, suas paisagens secaram, arroxeou-se, roxo dor, roxo solidão, roxo sem vida. De longe o planeta aquarela perdeu suas cores, perdeu seus encantos, perdeu sua vida.
Planeta aquarela desvibrou, desmanchou, e todo seu registro desapareceu na imensidão do espaço.
Já não houve mais tempo, tempo se perdeu, a vida se perdeu, o humano se perdeu, o curto espaço do vibrar de um planeta cessou, vida, alegria e loucuras cessaram, não há mais registro.
Planeta aquarela cessou sua existência há pouco tempo, aqui do planeta Terra quem poderia sequer saber de tal planeta, tão colorido e vibrante como o nosso, mas com um trágico destino.
A loucura de um aquareliano passa por aqui, está a cessar, a desvibrar, mas ainda há fracos resquícios de sua existência, loucura que revela mundo esquecido, loucura que tenta reaver a vida perdida, loucura que deseja virar as areias do tempo, revoltar-se ao tempo, voltar-se no tempo.
Loucura que permitiu, por um instante, a volta das vozes caladas em suas tumbas, vozes que gritam, que clamam, que choram o tempo perdido, as horas passadas, as noites sem sol. Lástimas de suas tumbas monocromáticas, soterrados em um lugar que não há nome, soterrados no esquecimento.
Desvibraram-se as vozes, desvibrou-se o louco, o silêncio dos mortos restou.
Nada ficou

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Aos anjos nesta terra

É engraçado os dias atuais, mas não um engraçado cômico... é um engraçado quase que mórbido.
O que estamos fazendo de nossos dias, de nossas horas, de nossos momentos? A cada dia que passa eu faço a questão - o que estamos investido em nossas vidas, e o que desinvestimos em consequência disso?
A gente pode fazer um apanhado geral do contexto que estamos vivendo, a pós-modernidade, os costumes de nossa época e nossos modos de se relacionar, mas isso vou fazer de um modo bem corrido, então perdoem o risco de ser simples demais sobre nossa situação.
Um enunciado que tem muito aparecido nestes últimos tempos é que vivemos numa sociedade narcísica, com um profundo investimento no eu, nisso que chamamos de si, e existe uma angústia, uma insegurança, e porque não dizer de um certo melindramento, perante o outro, o diferente. Para quem estiver mais interessado na questão da sociedade narcísica, eu aconselho a ler A cultura do narcisismo de Christopher Lasch para um futuro aprofundamento. Então, segundo esse autor, na cultura que ele analisou, que é a cultura norte-americana de décadas atrás, encontrou-se um padrão de sociabilidade que desinvestia nas relações com o outro e a dimensão pública, passando a um adensamento dos atos, das práticas e dos discursos sobre o indivíduo e a dimensão privada da vida. O que nos interessa isso? Interessa saber que apesar de isso se dar décadas atrás, ainda encontramos bastantes ressonâncias disso nos dias de hoje, no nosso cotidiano.
E outro texto que pode servir para ajudar nessa contextualização é A sociedade do espetáculo de Guy Debord, nele encontramos elementos que nos dizem um pouco sobre essa nossa obsessão pelas vidas e minuciosidades dos atores do espetáculo, nossas celebridades, e como acabamos usando elas como modelos em nosso processo de construção de identidades.
É referente a essas duas correntes de pensamentos que eu quero articular para pararmos um pouco e refletir, novamente, o que estamos fazendo de nós mesmos?
Quanto tempo dedicamos a decorar, estudar minuciosamente a vida de nossas celebridades, aquelas que aparecem na televisão, no cinema, nos estádios de futebol, nos shows de música, e queremos tornar-mo-nos elas, incorporar seu estilo, seu modo de vida, seus hábitos.
Quanto tempo dedicamos ao culto de um corpo perfeito, sob o modelo, que por acaso é baseado na exceção, de nossas celebridades, e nos tornamos infelizes por não estar dentro da norma, das regras e dietas do corpo?
E para cultivar esse corpo, esse estilo de vida, quantas vezes não deixamos de lado amigos, mães e pais, irmãos, filhos? O que deixamos de lado, desinvestimos para estar dentro desses modelos que se baseiam na exceção?
Eu quero lhes contar a história de uma mulher que mudou milhares de vidas. E por que digo contar ao invés de lembrá-los? Provavelmente ninguém ouviu sobre ela, ela partiu desse mundo há pouco mais de um ano, dia 12 de maio de 2008 seu espírito deixou seu corpo de 98 anos. Um dia depois de sua morte, um grande jornal nosso e de renome publicou em um breve artigo:
“Morreu ontem em Varsóvia, aos 98 anos, Irena Sendler, que salvou milhares de crianças judias durante a ocupação nazista da Polônia. Entre 1940 e 1943 Irena, que era assistente social, tirou 2500 crianças do Gueto de Varsóvia. Ela chegou a ser presa e torturada pela Gestapo em 1943, mas nunca revelou os nomes das crianças que salvou”.
E podemos dizer na ponta da língua qual o número do sapato de nossa celebridade favorita, mas não sabemos nada desses verdadeiros anjos que caminham entre nós e que dedicam suas vidas em prol de um ideal de fraternidade e amor. Uma frase que marca muito dessa mulher é sua explicação de porque ajudou essas crianças, judias ou não, que viviam nas vielas escuras de Varsóvia.
"A razão pela qual resgatei as crianças tem origem no meu lar, na minha infância. Fui educada na crença de que uma pessoa necessitada deve ser ajudada com o coração, sem importar a sua religião ou nacionalidade." - Irena Sendler
E nos dias atuais, o que fazemos? Ficamos cada vez mais absorvidos com a paranóia do fitness e das dietas, ficamos nessa busca obsessiva do corpo perfeito e da saúde, ficamos tão centrados nessas atividades pra quê? O que ganhamos com isso?
E pensar que antigamente, lá na época dos gregos, existiam os exercícios, treinamentos do corpo e da mente, mas essas práticas não eram a finalidade, mas o meio para se obter um determinado objetivo, que era ,digamos assim, sendo simplistas mesmos, um amor à Pólis, era uma forma de produção de estilos de vida que muitas vezes eram discordantes da hegemonia dos hábitos dominantes.
Hoje, essas práticas e exercícios tornaram-se finalidade, aquilo que era destinado à Pólis, à um outro, à uma certa alteridade, torna-se direcionado ao corpo, ao indivíduo, e agora são destinadas mais para a normalização da vida, um adestramento do corpo e dos estilos de vida à norma dominante do que um potencial de resistência cultural.
E agora?
Nesse adestramento do corpo sofremos, sofremos porque acreditamos hoje que nossos problemas se dão hoje por uma falta de responsabilidade perante a rotina e as práticas diárias que agem sobre o corpo. Aconselho a ler o que o professor do Instituto de Medicina Social da Uerj Francisco Ortega fala sobre esse tema em seu artigo Práticas de ascese corporal e constituição de bioidentidades. E esse adestramento de certa forma nos torna insensíveis a esse outro, quantas vezes pensamos nos necessitados e em como podemos ajudá-los, ou melhor, quando agimos para ajudar, como o fez Irena Sendler?
Podemos dizer que os dias atuais são bem mais tranquilos, e dispomos de muito mais conhecimentos, técnicas e recursos do que essa mulher fez durante a época do nazismo, mas apesar da abundância que temos à nossa disposição vivemos de forma mesquinha, pois não só negamos o outro, como perdemos o potencial das relações com esse outro, o que poderiamos ter construido com isso. Ao negar o outro, acabamos ficando mais pobres e não vivemos numa plenitude que poderia ser mais frutífera.
Eu espero que você não esteja confuso pelas voltas e voltas que dei até então, eu queria apenas mostrar o quanto acabamos vivendo num mundo que cada vez mais exclui o outro e que a gente se esquece que podemos investir em outra relação com o mundo, eu trouxe o exemplo de Irena Sendler, porém existem muitos outros exemplos que não são divulgados pelos nossos meios de comunicação, ao menos não com tamanha importância, e que esses exemplos nos fazem lembrar que é possível ser diferente e de fazer uma mudança, ter uma singularidade que inspire, torne-se uma luz que estimule outros a ver a vida de outra maneira.
Termino aqui com uma frase de Marcel Proust, e espero que ajude a reflexão, e não a complique ainda mais
"A verdadeira viagem de descobrimento não consiste em procurar novas paisagens, e sim em ter novos olhos" - Marcel Proust

quarta-feira, 13 de maio de 2009

A desmanchar

Há muito tempo tenho investido em uma trama, uma conjectura de fios que articulam-se e rearticulam-se damesma forma. Uma produção industrial, artesional de um estilo de vida que já indica seu próprio esgotamento. Lembro-me de Penélope, aquela de Ulisses, que a cada dia, esperando seu ser amado, ficava a fiar uma manta à seu velho sogro, mas Ulisses não voltava, e toda noite desfiava o tecido, para que dia seguinte recomeça-se a produzir o mesmo. Como alguém fica anos e anos da sua vida, numa situação drenante, entediante, reproduzindo, reencenando a peça do cotidiano, a espera de príncipes encantados, de promoções e elogios que podem vir a nunca serem concretizados? Por quanto tempos somos essas Penélopes da vida, restituindo, reterritorializando a mesma trama? Noucateamos a nós mesmo, esgotamos nossas forças físicas, mentais e emocionais, impedimos o fluxo da criatividade para manter as rígidas margens que nos cercam onde estão, e nisso o que está dentro, que a gente tenta reprimir, delimitar, começa a ficar turbulento. Essa força, essa ânsia em nós, de nós, trans-nós, fica fervilhando, ela não aguenta o maquinismo da produção em série, não aguenta que os fios se entrelacem sempre do mesmo jeito, ela desperta uma necessidade de remanejamento, rearticulação das tramas, um fazer diferente, um fazer que se desterritorializa, o nós e os nós devem ser desfeitos para que novos possam ser pensados.
Precisamos desmanchar a vida constituida em nossa fetichização e tomar rumo, desmanchar para que novas formas de interação sejam feitas, sair da semiotização que nos é dada como é certa, parar de achar que tudo é ou tem que ser uma re(a)presentação do passado. Precisamos fazer uma força para desmanchar a trama de nossas vidas. Mas por que desfazer aquilo que já está tão bem fundamentado, que nos é conveniente apesar de não nos gratificar? Dá muito trabalho mudar, um trabalho psíquico enorme, mas se não o fizermos, para cairmos no risco de uma extrema alienação, dum fetichismo obsessivo e, claro, às nossas pequenas têndencias fascistas são dois tempos, estamos numa corda bamba, e se não prestarmos atenção, caímos no chão com a cara estampada no nosso pequeno estilo de vida, não conseguindo ver outros modos de viver, de interpretar e significar. É difícil para alguém com a cara atolada na lama olhar pros lados.
Fetiche, alienação e fascismo, esses três enunciados andam lado a lado. O fetiche é a fixação de uma semiótica, uma visão de mundo, um processo de significação-mundo, no fetiche somos seduzidos, hipnotizados a esse determinado objeto, há uma extrema necessidade de posse, seja fisicamente, ou seja uma dominação no campo mental, é como se colocássemos uma viseira em nós, para que não seja possível enxergar os outros lados da história, cavalos de corrida que obedecem a seu cocheiro, aquele poder que temos de fazer, de transformar é inibido em prol a uma ordem superior, o nosso feito, nosso poder-fazer já não é mais de nossa autoria, mas da autoria de nosso objeto fetichizado, este exerce um poder sobre nós que os efeitos e causas mal poderiam ser abordados nesse texto, e essa viseira que nós e que nos é colocada advém junto com a nossa alienação, ao deixar de ver outros mundos, outras óticas, o que nos resta? Resta acreditar que aquilo que está sendo feito sempre foi assim, numa lógica de territorialização-esquecimento, funciona assim, nós que somos seres que temos um poder sobre o fazer na realidade articulamos os elementos desta para criar uma concepção de vida, criamos um modo de interagir com esta realidade, mas o que acontece aqui? Acontece que ao criarmos esses estilos de vida, nós criamos territórios ondes os elementos da realidade se encontram, e os elementos que não eram úteis ou atrapalhavam a significação desse estilo de vida são marginalizados, negados e por fim esquecidos, tendemos a esquecer os processos e as forças que nos articularam a ser como somos, e se ficamos imersos na inconsciência, continuamos a ser agentes passivos dessas forças que atuam sobre nós e continuamos na alienação. E na alienação também encontramos a repulsa e o dogmatismo que ajudam a construir os pequenos fascismos diários que praticamos. E como esses fascismos cotidianos se apresentam? Sobre várias formas como preconceito, posturas irreflexivas, posições de dominação e qualquer ato, mesmo na conduta entre amigos e amantes, que seja contra o diálogo e a liberdade subjetiva, ser fascista é ser contra desterritorialização da vida em prol de novas articulações, é não perceber que na existência as coisas não sao isso "ou" aquilo, as coisas podem ser isso "E" podem ser aquilo, uma visão de mundo não dispensa a outra, mesmo a científica e a religiosa.
Desinvestir é a peça em questão no desmanchar, eu desmancho porque eu não quero mais investir nessa relação, nesse trabalho, nesse tipo de vida que venho levado, eu desmancho porque quero coisas diferentes, quero sair daquelas quatro paredes e aquele teto feito por mim e meus ancestrais que dizem nos proteger do lado destrutivo da vida, eu desmancho essa minha proteção porque eu quero ver a vida, e não mais sobreviver, quero estar imerso na vida.
Eu desmancho para viver.