sexta-feira, 24 de dezembro de 2010
Ao não nascido
terça-feira, 14 de dezembro de 2010
Amor hackeado
quarta-feira, 8 de dezembro de 2010
Cal-tô
domingo, 5 de dezembro de 2010
Intenso, eis
quinta-feira, 25 de novembro de 2010
A velha e a pequena
Havia um boato de que um homem de estudos iria habitar a cidade, o povo ficava orgulhoso de tamanha figura, apenas duas pessoas do povoado não viam sua chegada com bons olhos. A cigana da cidade advertiu que maus ventos o trazem, e os homens mais fortes trataram de bani-la da cidade. A outra contestadora, era uma contestadora silenciosa, miúda, simplesmente via algo estranho se aproximando, e com frio na barriga pegou seu triciclo e voltou ao colo da velha para adverti-la deste homem.
A velha era de grande sensibilidade às suas fabricações, mas aos agudos clamores da menina permanecia surda. A pequena neta foi-se dormir em vão, não sem antes como de costume sentar-se à beira do rio e tacar-lhe algumas pedras. O que a pequena não havia visto, nem ninguém do povoado, que apenas a cigana via, pois tua visão era de outros mundos, era a coluna de fumaça no horizonte que rivalizava com as obras dos céus, uma estranha ambição da negra fuligem em tocar as estrelas. O homem de estudos chegava à cidade.
Com canções, marchas e fogos de deixar a população maravilhada, o homem de estudos acordou toda a cidade, enquanto o vilarejo ouvia apenas algumas explosões abafadas. Conversava em praça pública o quanto a cidade tinha a melhorar, ao padeiro fornos e esteira automáticos para livrar-lhe o trabalho de assar seus pães, à costureira teares mecânicos que produziriam em um dia o que ela fazia manualmente em um mês, ao sapateiro uma máquina de fazer calçados. O homem de estudos, cheio de boas intenções e de progressos, agora pairava no centro das atenções da cidade.
O povo do vilarejo que ouviu os estouros finalmente chegava à cidade, mas estranhamente esta já não era a mesma, as antigas charretes agora davam lugar a máquinas de rodas que expeliam negras nuvens a cada quarteirão. A cidade era outra. Assim como o padeiro, a costureira e o sapateiro eram outros. A cidade antes fundada solidamente entre os morros à leste das montanhas passou a crescer, e crescer, e crescer. Mal se percebeu e o vilarejo e a cidade eram um só, mas quem era da cidade, não era um com quem era do vilarejo. Uma pequena diferença de origem diziam, e o trato antes respeitoso foi trocado por gélidos olhares de estátuas, revidados com amargura e ressentimento.
Mas a boa intenção do homem de estudos não parava ai, seu sonho era juntar todos. Havia juntado cidade e vilarejo, levado progresso e fortuna, mas ainda faltava em seus planos estratégicos uma certa casa de chaminés agora reduzidas, pois não se comiam mais pães doces no jantar. Na porta de madeira de lei, o homem de estudos estacionou, bateu uma vez, bateu duas, bateu três. Se esquecera que já era tarde da noite, pois as luzes do progresso emanavam agora de todo canto, fazendo com que até o homem de estudos não soubesse o tempo além dos horizontes da cidade.
A pequena neta abriu sorrateiramente seus olhos, ficou aflita. Uma intuição de criança que era surda à mente dos adultos, e mesmo assim foi alertar à velha das sombras do homem. Como boa anfitriã, a velha acordada pela neta agora abria a porta ao homem de estudos, convidando-o a tomar uma xícara de café. Mal sentou-se à mesa, o homem começou a lhe ofertar propostas de industrialização, propostas de tornar o panetone um produto dos mercados crescentes da cidade, propostas e mais propostas foram feitas, mas a velha não se mexia.
Fora uma árdua noite ao homem de estudos, que até então convencerá as almas da cidade ao progresso, fora uma horripilante noite à pequena neta, tremendo pelo pior. Mas teus calafrios haviam um pingo de razão, pois logo adormecera e o homem de estudos fez um apelo aos netos que agora acordavam: a velha não ficaria com seus netos mais apenas aos domingos, mas sempre que acabasse as encomendas. Em coro os pequenos, os médios e os grandes fizeram a velha ceder, e que o progresso entrasse em casa.
Máquinas, engrenagens, esteiras começavam a fazer parte do cenário da casa. Panetones, bolos, pães, roscas saíam das fornadas, trocou-se a lenha das caldeiras por óleo, e a casa enchia-se da mesma fumaça que pairava à cidade. Nunca a velha produziu tanto, mas nunca teve também tantas encomendas. As chaminés só aumentavam de número, e quanto mais a cidade crescia, mais chaminés apareciam. Apenas a pequena neta percebeu que foram ludibriados, mas ninguém a ouvia, pois as palavras de uma criança nada valiam à um adulto de razão.
Domingos e domingos se passavam, e a velha ficava mais atolada de encomendas, e mais distantes dos netos, e a fuligem de sua casa-fábrica agora consumia sua saúde. A velha enfim ficara de cama e nem o médico, nem o homem de estudos souberam o que fazer, mas a cidade tinha que continuar, e as encomendas chegavam sem parar, eis que o homem de estudos disse à velha que os netos continuariam seu trabalho para que entregasse as encomendas no tempo certo. Se o silêncio falasse, agora a velha já estava catatônica e nada além do som de uma pesada respiração de sua semi-aberta boca.
A pequena neta não podia mais, havia de fugir para algum outro lugar. Lugar nem fábrica, nem vilarejo, nem cidade, nem casa. Agora era órfã de lugar. Pegou uma pequena trouxa e a faca que a velha cortava os panetones, deu três beijos na testa velha encamada e partiu. Nem velha, nem netos, nem médico ou padeiro, nem costureira ou sapateiro perceberam a fuga da mais pequena de todas. Mas minucioso como era, o homem de estudos percebeu, e entranhou-se em um secreto desespero, daqueles que palavras não dão conta.
Correu esquinas, vielas, andares, escadas em vão, o homem de estudos deixou um fora de suas mãos, pressentia o perigo que corria, mas a pequena neta não. A pequena não sabia que seria procurada com obsessão tamanha, só conhecida por aqueles afeitos às corridas d'ouro. Nada de precioso carregava, nem talheres, nem cetim, nem passas, nem avelãs, apenas trapos e uma velha faca que estava a enferrujar. Seguiu as bordas do lodoso rio rumo a sua nascente, procurava águas mais puras, que quem sabe curasse a velha, era o que diziam alguns, ou que apenas queria fugir daquela cidade para nunca mais voltar, eram palavras de outros.
Ao certo, só a intuição de uma criança pode escolher um caminho qualquer, e o qualquer foi escolhido. Os olhos da pequena não foram marcados por intenção alguma, mas o coração seguia passos e passos para nenhum lugar em especial. O rio em seu lodo parecia estender-se ao infinito do horizonte, mas a pequena seguia adiante, eis que sem perceber o som acalenta seu corpo, e mais imperceptível ainda o céu finalmente escurecia. No limite do qualquer de seus atos, encontrou sem nunca saber a noite.
Acordara na montanha sob as vestes da cigana, uma palavra foi dita, mas não palavra de homens, a pequena não compreendeu. A cigana não proferiu mais nenhuma palavra dias a fio, levantou a faca da pequena e tacou-lhe numa das inúmeras fissuras da montanha. A pequena desesperou-se com tua última lembrança ser lançada ao fio do coração da terra, chorava em torno da ferida que não sabia mais se era sua ou se era da terra. Cavou com uma, com as duas mãos, cavou com os pés, e quando teus braços e tuas pernas fraquejaram, cavou com os dentes e o pescoço, mas por mais que cavasse, a faca já pertencia ao coração da terra.
Olhava agora pro céu, cinza e arrebatador, e rodopiava olhando o vale e a cidade, a luz se tornara do chão, e as cinzas, do céu. Estranha reversão das paisagens, a pequena poderia dizer o mundo endoideceu, mas já nada dizia, estava então sozinha, sem velha nem cigana, sem um alguém, sem ninguém. Mas havia algo de celeste que não havia de ser comentado, conchas e mais conchas brotavam ao chão, conchas marrons e conchas acizentadas por dia brotaram. Aí está, ouviu sussurar o vento, o aperto da velha doente lhe veio à memória e a lágrima não se conteve. Deslizou por seu nariz e caiu pelo chão, tão logo caiu uma, outras vieram em torrente, escorregando à fissura.
A terra sentia mais uma vez água em teu coração, e a água subiu, subiu e subiu, trazendo a faca à superfície mais uma vez, mas a faca já não era a mesma, reluzia como o sol que já não era mais visto, e enfim a pequena apunhou-a com suas duas finas mãos e as conchas começaram a vibrar, e vibrar, e vibrar. Num engatilho de explosões, cada concha liberava uma borboleta única, dezenas, centenas, milhares de únicas povoaram o céu ao redor da menina já não mais pequena, já não mais neta. Sua intuição de criança pedia um último ato, que coincidiria com seu ato último. A menina não titubeteou.
Levada pelas borboletas ao céu, empunho a faca às nuvens, e no centro de todas as cinzas apunhalou os céus. Um pequeno raio de sol pelo fio cortado passou, raio este que atravessou as brumas da cidade, o nevoeiro do vilarejo até chegar ao quarto da velha, restaurando-lhe a saúde. A menina caiu dos céus, e as nuvens se dissipavam e tanto o sol como a lua retornavam seu olhar ao povoado, as borboletas ficaram e dançaram sob sol e lua, mas menina não dançou mais. A cigana contorcia-se em risadas, o homem de estudos desbandava em desespero com tuas máquinas e mecanismos. A cidade e o vilarejo não eram mais um só, e a casa da velha não tinha mais chaminés que se estendiam ao horizonte.
Tudo voltara ao normal para alguns, mas jamais para a velha. A menina caiu dos céus para seu colo e deu-lhe um abraço, daqueles abraços que são sempre os últimos, e apenas quem o dá, sabe. Pálida, pronunciara uma única palavra, que tornara a velha, em avó.
Dizem que todos os anos, sempre na mesma época borboletas dançam sobre o ar para lembrar a netos, a avó, aos vilarejeiros e aos cidadões a menina que se foi.
terça-feira, 9 de novembro de 2010
Um brinde ao fracasso, gêmeo da invenção
domingo, 24 de outubro de 2010
terça-feira, 19 de outubro de 2010
Às soberanias, uma vírgula
quarta-feira, 6 de outubro de 2010
Microcorporativismo - brainstorm I
terça-feira, 5 de outubro de 2010
Protótipo de elite
sábado, 2 de outubro de 2010
Ecologia de cavernas
segunda-feira, 30 de agosto de 2010
Encontros literários - V
Encontros literários - IV
Encontros literários - III
Encontros literários - II
Encontros literários - I
segunda-feira, 16 de agosto de 2010
sábado, 14 de agosto de 2010
Perfume
segunda-feira, 2 de agosto de 2010
O que se põe à caça?
sábado, 31 de julho de 2010
Nemesis
Os instintos também se vão, corpo sem esforço, que desaba na queda e lhe cai como uma pluma. Não se sabe mais diferenciar humano e animal, pois se despecializaram, despedaçaram em configurações inumanas, sincréticas, diaspóricas. O contra-movimento, o contra-peso não se tornam a negação de fluxos, mas sua intesificação e diferenciação, movimento além da dualidade excitação/repouso. Entrega à determinação gravitacional, e do peso lançar vôo. Um braço que se vai no espaço não é um elemento, mas uma colônia, um povoado de forças, multidirecionais, multidimensionais. Fuga constante dos si, fuga que é luta expressiva. Síntese mutante de um fora. Pensa-se então, a dança, por inteiro, é composição pura?
quinta-feira, 29 de julho de 2010
Vaso ou cachorro?
sábado, 17 de julho de 2010
Risco e garantia
sábado, 3 de julho de 2010
Toxicomania
sábado, 26 de junho de 2010
Corpo-linha
segunda-feira, 21 de junho de 2010
...
sábado, 19 de junho de 2010
Vermelho de Sangue
segunda-feira, 7 de junho de 2010
Clandestinos
Fico aqui, engessado, travado, só livre de imaginação.
Não, não sei da onde você veio, mas esteve aqui,e como num passe de mágica, se foi.
O encanto? A graça? Esses ficaram. A alegria persiste, resiste a um pé quebrado.
Quem foi, quem será? Que corpo foi esse? Não conheço a história, não a entendo.
Ainda bem que um amigo me disse: o entendimento é apenas uma das camadas.
Que bom existir além do sentido. Viver do sensível. Reverberar.
E ao chegar a ti, sei que já não sou o mesmo. Algo mudou. Um trincado no meu corpo.
E como bom operatório-concreto, o trincado não podia ser subjetivo. Tinha que ter corpo.
Corpo de uma alma em processo, em meio a quebras e rupturas, um desabrochar.
Sim, estou num casulo agora, e preciso de duas hastes para andar. Já não ando só.
Não sei quando andarei só mais uma vez, mas mesmo só, agora sei a quem contar.
Não foi um encontro, é um acontecimento. Sei, porque não parou.
Invasão de corpos. Luz. Som. Bebidas. Gesso. Muletas. Clandestinos de todas as partes.
Mas quem me tornou um clandestino de mim mesmo. Esse foi você...
domingo, 30 de maio de 2010
Recados para um desconhecido
Visitante sem rosto, se me permite lhe dirigir algumas palavras, fique atento.
Não prossiga, pois cá não encontrará as bases de um progresso.
Não persiga, aqui não rege a lei da selva humana.
Não me siga, se não quer cair nos meus buracos.
Não me seja fiel, pois não há história para se reportar.
Aqui de homem, nada encontrará além da pele.
Vísceras, músculos e ossos foram destituídos. Pele desossada.
Uma bela imagem, moldada por artistas perspicazes. Mas é pele.
Não confunda pele com derme: a pelagem que nos recobre não se reduz aí.
Para dentro se avança num vazio sem rumo. Mas o que é o rumo pro vazio?
Tentativa de, movimento de. Mas não se objetiva.
Pele adentro a gente se sufoca nas dobras.
Tão vivas, nos emergem, nos raptam.
É de pele que somos feitos. E estamos diante de um frio desconhecido.
Buscamos todas que já passaram, cada pele que já vingou, e nos agasalhamos.
E entramos num paradoxo, quanto mais pele, mais frio sentimos.
Que é esse desconhecido que queremos tapar a todo custo?
Há um abismo gélido à nossa espreita? Mas qual o medo?
Por que não? Por que não o abismo? Quem sabe seja a pele o abismo.
Quem sabe é a pele o frio.
É hora de descamar, lixar esta pelagem e sair do terminal.
Visitante desconhecido, você não é mais o mesmo.
Bem-vindo
sexta-feira, 28 de maio de 2010
Inumanizar
segunda-feira, 10 de maio de 2010
Procura-se artesãos
Procura-se artesãos que ficam enquanto nós vamos em nossa pressa.
Procura-se, procura-se, procura-se sem fim.
Artesão outro que não satisfaz meu desejo, pois é do outro ser alheio a mim.
Comecei lá trás a correr, não sei o porque, mas parece que a estrada incita a velocidade.
A alma das estradas é puro movimento, é vertigem ao limite.
Tão vertigem que toca suas pontas, e seguimos rodando. Roda sem fim
E aceleramos na abstração, o reino dos pulsos.
Pulsa um. Pulsa dois. Pulsa três. Continua pulsando.
Pulsa e retorna, lança-se de sua origem para atingí-la.
Mas no pulso vemos a desmetaforização da vida.
Cada vez mais fica difícil encontrar artesãos pela estrada.
Se encontra estruturas metálicas, blindadas e bem fechadas, isoladas.
Não, não são carros, são seres autênticos: autênticos seres humanos.
Parece que todos chegaram a uma vertigem que os torna intocáveis.
Mas o preço da ausência de contato é uma busca, parece que algo falta.
Procura-se uma obra que complete. Mesmo que por um instante.
Mas não há obra que complete, pois é impossível completar.
Artesão parava na estrada e fabricava.
Artesão terminava coisa, e dessa coisa já não era mais o mesmo.
Artesão nunca foi autêntico. Artesão é sombra de criação.
Repete movimento ofuscado e desliza. Torce o pé. Beira à estrada.
Parado entrevê passagem desses seres autênticos, e da penumbra realiza.
Que é o artesão senão aquele que cria à deriva? Ser determinado, jamais autêntico.
Determinado? Determinado a desejar, ser que por existir deseja, deseja a vida.
Artesão cria suas própria metáforas.
Este reino luminoso do abstrato não lhe pertence, o artesão de fato é falso.
O verdadeiro é técnico, faz muito bem seu trabalho, e determina-se a ser o que se é.
Verdadeiro são palavras, palavras que viram meus olhos. Mas nunca fui muito autêntico mesmo.
Desejo parar na estrada, deixar de ser humano, apenas parecer sê-lo.
Não vejo muita graça em ser, ou completar quadradinhos.
Desejo algo que me é alheio, para tornar-me outro.
Desejo viver, pois é ela que me difere.
Desejo, desejo, desejo.
A vida é minha suave artesã
sexta-feira, 7 de maio de 2010
Urso polar à deriva
Coragem...
Era uma nuvem de algodão que ao meio de tudo possuía um ponto molhado e preto. Grande, quando ficava de pé botava medo naqueles ao redor. Mas o gigante mal se punha de pé, ao contrário, deixava que se acomodassem em seus macios tufos cor de neve.
Sonolento em teu reino, um gélido pedaço de pedra à deriva no mar. Vagarosamente sentado no centro da rocha. Mesmo com suas vigorosas patas que poderiam partir árvores ao meio, tinha medo de sair de seu lugar. Tanto poder que jamais sairia da concha, pelo medo do vão. Quando pequeno, quando ainda uma bolinha de pêlos, passeava pelos redores da pedra, mas foi crescendo com medo do mar.
Era um urso polar que não sabia nadar. Mas por medo de nadar, já não andava. Ficava lá, em seu centrinho, encolhido com as patas sobre o queixo – apenas olhava o movimento. Às vezes ensaiava um pequeno movimento, uma dança com o vento, mas quando sentia a terra vibrar, seus ossos tremiam, e o urso enchia-se de medo. Recolhia-se como se nunca mais fosse se mover.
Ao que ele se guardava? Acho que nem ele sabia. Por que tantas travas, tantos medos? Por que não dançar quando se ama? Queria eu saber as respostas, inventar um final feliz pro urso. Coragem...
Queria tanto que esse urso tivesse coragem para ir às bordas da pedra e tocar o mar, mas não. Eu não tenho coragem de escrever este final, eu não sei escrevê-lo. Queria poder, mas é mais forte que eu. Não sei, me parece que se inventar esse final para o urso, terei eu que dançar com a vida. Dúvidas, dúvidas, dúvidas...
quarta-feira, 21 de abril de 2010
Quando o ócio virou tédio...
Não ter o que fazer virou tédio. O ócio virou tédio. E o tédio gera padecimentos.
Nesse mundo de velocidades que vivemos, ao invés de ficarmos mais leves, estamos tão pesados quanto na época das carroças. Nosso corpo, ao invés de ser uma pluma que acaricia o outro, tornou-se nosso confortável e macio exílio. Nossas pernas foram criando raízes a um solo que se desmorona, não quer largar, não quer deixar ir.
E o homem agora se guia por sua própria blindagem, deixou de ser um elo de mundos e tornou-se uma couraça. E o tédio? No corpo blindado já não passam mais afetos, não há passagem de entrada nem de saída. Nesses corpos que deixaram de ser passagens os afetos estagnam e transformam-se em tédio.
A abertura ao ócio já fica cada vez mais comprometida, e o pular descomprometido pelas terras da existência se tornam uma raridade. O que assola é um homem constituído de deserto, não mais capaz de ser outro.
Esse grande deserto passou a cafetinar a vida, a estuprá-la, a fazer dela sua escrava. Ele mente. Suas areia são mentirosas, sibilam pelo ar nos contando que já não há outro mundo possível, mas é a tempestade de areia que faz diante de nossos olhos que nos impede de ver a possibilidade.
O movimento a ser feito é paradoxal, o mundo ficou pesado, mas é da leveza de que necessitamos nos libertar. Nesta superficial leveza somos levados pelos encantos do deserto e derrubados no chão toda vez que nos aproximamos das tempestades. Para nos liberar dele, precisamos ganhar peso, dar novas formas ao nosso corpo que sejam capazes de ir além das tempestades, resgatando o possível. Mas nem toda tentativa dará certo, e nem se sabe se alguma conseguirá.
Mas é num incontornável movimento da vida contra este deserto que podemos tentar reconquistar o acesso àquilo que nos guia, e não ceder aos encantos traiçoeiros das areias, para que possamos enfim reinventar permanentemente a existência.
Precisamos do ócio, este corpo que se mantém aberto, que é passagem de afetos, colocálo em movimento para que crie suas próprias histórias, músicas e sinais.
sexta-feira, 9 de abril de 2010
Medo da periferia
Para nós, a primeira vista, a primeira representação que nos vem a cabeça é nada menos, nada mais que as favelas - independente se são as favelas do Rio de Janeiro, ou de São Paulo, ou de outro centro urbano qualquer.
A periferia não é apenas um ponto geográfico. Nosso olho do vísivel o capta assim, mas periferia não é aquilo que circunda a cidade. isto é, não somente.
A periferia está no centro!?! Como assim? No centro? Ela não se constitui nos arredores da cidade?
Para que haja os grandes centros urbanos é necessário que uma grande parcela, a chamada periferia, fundamente o plano em que o centro será constituído. O centro, então, é posterior à periferia. O dito centro ao qual nos apegamos, e às suas riquezas e belezas, é o ponto geográfico onde convergem as forças da periferia, as forças de homens, mulheres e crianças. Em suma, é uma força do comum, daquilo que se passa por entre nós, e não é um filtro representativo que é capaz de eliminá-la.
Esta força se faz no cotidiano. Na pendura do varal, na confecção do bolo e nos devaneios da rede. A casa. Este grande laboratório sócio-político, espaço afetivo onde se ensaiam formas, hábitos - mesmo que nem toda simulação vem de nossa vontade.
Passa-se um desejo por nós, mas é um cuidado que devemos tomar, uma certa prudência, pois tal desejo não vem de um eu. Vem de uma realidade que ser atualizada, e algo em mim opera neste sentido, pois algo gora, perde o brilho e o viço, algo resiste e tenta ficar em pé, mas são necessárias outras formas, outras matérias de expressão para que o brilho venha à nossa existência.
E a periferia, ou melhor, o fantasma da periferia é o fantasma que fica em nosso cangote, respira pesado e faz gorar aquela máscara que usávamos. Esta respiração ofegante, algo meio que maquínico que não permite a simulação estancar. É o fantasma que está lá, suscitando em três formas o medo.
1. A periferia é violenta
O primeiro medo, é o medo da morte. Abstraímos, nós, moradores-consumidores dos grandes centros urbanos, a violência em nós, a violência de nossos hábitos, a violência que nos permite estar no lugar onde estamos.
Negamos a guerra, negamos o mal, mas nosso corpo parece que está em guerra. O tempo todo estressado, é um medo que devora a alma, que percorre a existência. Medo de sair de casa, aquele antigo útero materno onde todos estávamos protegidos contra o fora. Mas essa casa já caiu, ela se faz misturada com o mundo, e já não é mais um anjo da guarda. Temos que sair, dia-a-dia, da casa.
Não acreditamos mais nas ruas, e o rosto do outro, olhar no rosto do outro é um ato de coragem. Em uma multidão, como não saber se o próximo é um ladrão, um pedófilo, um tarado ou um psicopata? E desconfia-se de tudo, de qualquer gesto, e se estender a mão para alguém, você ganha um relógio, quem sabe uma bolsa, mas jamais um aperto de mão.
Olha-se para baixo, que do alto se vê as pessoas ao redor. Não, não. Cada um é o mal em potencial, é aquele que nos ameaça. É aquele que pode nos mandar para a periferia.
2. A periferia é o fim do mundo
Quem não ouviu as constantes ameaças do mundo, que se não estudar, se não se dedicar direito, viverá nas favelas. Mas não é preciso mais pegar um ônibus para a periferia para se estar nela. A periferia é o fim do mundo, ou melhor dizendo, é o fim de um mundo.
Estar em contato com o periférico e seus habitantes já nos provoca uma série de afetações, muitas de indignação, de recusa a este modo de existência. E medo deste modo, pois ele pode estar mais próximo do que imagina. Medo por que ele é limite, território-limite de nosso centro. E ao "reformá-lo", querer mudar as condições de vida de lá, estamos inevitávelmente encarando as forças que nos constituem, aquelas mesmas forças que nos permitem circular pelos centros e ser o centro de suas atenções.
Encarar a periferia é encarar seu mundo, seu chão. Lá que está o sutil fluxo que ora dá sentido ao que fazemos, e ora os tira. A periferia sensível é onde nossos corpos já começam a capengar, tropegar. E arranjar forças que lhe permitem sustentar essa perda de sentido e não cair no desespero não são tão fáceis de se encontrar.
É toda uma relação com o outro que deve ser construída, uma relação que ampare a queda, não para que se diga que não ocorreu queda alguma, mas para que essas mãos que nos seguram antes de tocar o fundo do poço nos dêem espaço para que possamos construir um novo habitat. Para que possamos fazer vigorar um novo mundo.
3. A periferia é singular
Do social, das vivências, recortamos encontros, e estabelecemos relações entre estes encontros, vitalizantes ou decepantes. Do encontro, fazemos permanecer um traço, e o conjunto destes traços formamos um mapa, toda uma estruturação ecológica de nosso ser. E ao estar imbricado nessa ecologia, temos um grande papel, que é ser um estrategista da existência - perceber onde está reluzindo um ínfimo brilho e intensificar aquela luz, e onde já se há uma imagem opaca e pesada, ajudar a decompô-la. Um sutil exercício para sustentar territórios existenciais.
Eis que estamos diante de nosso medo psicológico: a loucura. A loucura é a periferia da razão, necessária e angustiante ao mesmo tempo. Necessária, pois é através dela, de seus movimentos que a razão não é uma abstração cristalizada, e podemos compor com o mundo em maior ou menor escala, uma razão sensível às alterações do mundo. Angustiante, pois ao adentrar no território da loucura, perdemos aquele chão firme, aquele fundamento que nos sustêm, e ficamos à deriva num mar revoltoso, onde o mundo nos engole e já não somos capazes de compor com ele eficientemente, é o delírio que nos afasta dos encontros, a persecutória que está atrás de nosso ouvido.
Ao avançar neste território, nos perdemos facilmente, e sem amparo, nossa vitalidade pode ficar com graves cicatrizes. Cicatrizes afetivas, orgânicas e sociais. Pois não é todo outro que ampara, ou aceita, a loucura que carregamos.
Mas falei do medo, mas ao mesmo tempo falei que a periferia é singular. Por quê?
Esse medo, que definimos até então a partir de três fios: o medo da morte, o medo da perda de sentido e o medo da loucura, são três movimentos de um mesmo medo. O medo da exclusão. Estar fora do mundo dos "vivos", não estar circunscrito na ciranda social ou nos postulados da razão são formas de exclusão de um mundo. Um dentre os possíveis.
A questão é que o singular anda ao lado da exclusão, pois nunca se sabe o limite de suportalidade da rede para a singularidade que encarna em você, e uma singularidade por demais intensa ou uma rede rígida demais pode se romper com estes movimentos que tecem este real-social.
4. Para além do medo
Habitar a periferia se faz um movimento preciso, não por uma boa-vontade social de enfeitar o mundo, mas pelo tipo de cidade que queremos habitar. Aliás, deve-se fazer esta pergunta: que tipo de cidade queremos habitar?
Periferizar o pensamento de nossos grandes centros urbanos, onde uma grande abstração teima em reger nossas vidas, nossas percepções, nossos modos de amar e pensar, em suma, nosso cotidiano. É necessário sair das avenidas centrais por onde circulam nossos afetos para encontrar um lugar onde constituámos um plano com o outro, algo comum entre nós, e possamos construir um ritmo comum para uma, mesmo que breve, troca de afetos.
Lembrar que nos diferimos daquilo que somos não porque temos vontade, mas algo que está em constante produção não cessa de tentar se atualizar em nós, por meio de nós, e basta abrirmos um canal com este que me é exterior para ele se efetuar. Transforma-se não por dentro, mas pelo contato com o fora, com a periferia.
E é pela periferia, por estes limites de nosso ser que podemos construir uma cidade singular. E para uma cidade singular, a construção de uma ética da singularidade, onde se faz dos homens grandes experimentadores da vida, audazes aventureiros, que não apenas colham aquelas diferenças que já estão no campo, dadas, mas que produzam novas diferenciações, novos contatos com uma periferia que a cada momento se difere. Assim poderemos fazer do homem um afirmador de existências singulares.
Superar o medo é preciso!
segunda-feira, 5 de abril de 2010
O mundo é leve?
A despeito de minha concentração, berrou meu nome, e pediu-lhe pra responder uma pergunta. Uma única pergunta e me deixaria em paz.
"Fe, você que estuda tanto... o mundo é leve?"
Essa pergunta me desconcertou. Não, eu não sabia. O menino se foi desapontado. Não tornei a vê-lo por muito tempo. Tempo até demais.
De que adiantaria dizer que a Terra pesa toneladas e mais toneladas, mas comparados com o peso do universo, somos uma pluma à deriva? De fato, naquele momento, nem essa resposta eu tinha...
Apenas uma cara de expressão vazia, desapontada com o mundo. O menino não precisou de minhas palavras, bastava ver meus olhos secos e minha atenção fúnebre. Sei que aquele menino ficou muito bravo comigo, e anos a fio não quis falar comigo.
Tudo era feio, e o mundo não rodava. Já acreditava em nada, já não confiava em nada. E um choro reprimido daqueles que não querem chorar ficava guardado no peito, ocupando uma boa parte de espaço. A vida passou a ser um incômodo.
De dia fugia da própria sombra, à noite buscava a resignação nos estudos e nas promessas de mudança. Estudei, estudei... e o mundo não mudou. Aos poucos eu mudei, fugindo duma couraça, mas entrei em diversas outras. Passava a acreditar em alguma nova mitologia: a ciência, a arte, a revolução. Mas logo passava, ia em vão.
Mitos são apenas mitos, dizem. E fadas, minotauros e sereias são apenas mitos. E mudar é um mito. Deixei de acreditar nos mitos, e com isso, na mudança. Mudança mesmo que de uma única coisa, uma única pessoa, mesmo que seja eu esta pessoa que muda.
Se já num tinha esperança em mim, como o teria do mundo? Aquele menino que me deixou alí, sentado, tinha razão de estar bravo. Eu desistir de mim, eu desistia dele. E ele me estimava muito.
"Olha aquela flor. Deixa a borboleta voar"...
E eu ignorava. Custava-me entender...
O mundo se tornará pesado, demasiadamente pesado. E já não queria mais levá-lo.
Mas esse menino inquieto volta. Já não é mais um menino. Já é homem, mas também é pássaro e é leão. Ele sabe que a vida é muito mais que nosso umbigo, que nosso sofrimento, que nossa asma existencial.
E vem aqui a conversar comigo, um velho precoce. Visita-me como um amigo. E eu me sinto num asilo. Quero colocar o pé na cova, mas ele não deixa. Não porque eu seja jovem ou velho, não é isso que ele implica. É viver como um cadáver que ele não aceita.
Eu retorno sua pergunta então.
"Descobriu se o mundo é leve?"
Ele balançou gentilmente a cabeça e disse
"Um mundo é apenas um mundo. O que importa é o que você faz com ele."
Soltei um riso sutil, não acreditei nele. Pareceu-me um pouco de infantil essa afirmação. Ele sorriu de volta e disse que logo voltaria. Fiquei lá, meditativo.
Mal reparei no pequeno bilhete que deixou, um pequeno poema escrito às pressas
"o que torna pesado ou leve o mundo
não é a alegria ou a tristeza que temos,
mas os nossos sonhos e sua falta."
um pequeno manifesto do sonhar que deverá ser escrito...
domingo, 4 de abril de 2010
Não só de colocar as palavras em atos, ou pincelá-las no fundo branco do word como diria um amigo.
Quem dera a dificuldade de escrever fosse a falta daquela palavra, aquela palavra mágica que destrincha mundos... mas não
Escrevo sobre o escrever porque não consigo escrever o que quero, o que me passa.
Estou insône, a cama não está convidativa. E nesse meio termo uma nuvem, algo gasoso que me dá náusea - e não é do lixo da cozinha.
Olho para o computador, ele olha pra mim. Me encara. Há algo de estranho nele.
Fico-o observando, é como se ele estivesse a ganhar vida, brotasse pernas e fugisse de mim...
ou quem sabe ele já o fez, e o que agora contemplo é um cadáver, um abismo de metal, plástico e chips - microchips.
Essa fascinação ao mesmo tempo que me é estranha, me é familiar...
queria que outra parte da casa fizesse barulho, um rato na cozinha, uma vassoura caindo na varanda, folhas voando da escrivaninha. E nada. Um pio sequer nem do menor dos seres daqui.
Ouço apenas a respiração, minha respiração, quebrada em movimentos para dentro e para fora, e esta outra respiração, contínua, um barulho a princípio enlouquecedor, mas logo nos acostumamos.
Respiração das ventoinhas. Se bastasse respirar, estaríamos ambos vivos, mas eu duvido que isso basta, não basta um computador respirar para ter vida, tal como não basta alguém respirar para ter vida, e muito menos inteligente...
Logo após um tempo, o corpo zune em ressonância com essa batida binária de 0s e 1s. Corpo que vira máquina, e a medida que maquiniza, produz.
Esta escrita, conjunção mãos-teclados, não é necessariamente original, mas uma escrita necessária. Parece-me que quando os dois estão juntos, eles teclam, teclam sem parar, sem se preocupar muito com o que vai sair. E cada vez o espaço de tempo da escrita diminui.
Pena não poderem ler à medida que isto vai se escrevendo. O blog não permite - poderia fazer um flash, mas isso exigiria um trabalho que no final não atenderia a esse (des)sentido.
E o chão vibra! Vizinho que vai buscar água no filtro. Não sei se há vida lá, mas sei que algo faz vibrar, já não somos um caso de amor eu e computador, outros sons se fazem.
O apito do guardinha, o som de um carro nômade, e de longe, bem baixinho, o som do mar revoltado.
Mas eu vou cansando, meu corpo vai cansando. Ele não, este outro corpo mantém-se imovél, operante, iluminado. Enquanto o meu vai escorregando pela cadeira...
O cansaço já me abate apesar de não haver sono. Já deste companheiro, só se vai porque não há mais quem teclar.
Enquanto isso prestarei em meu altar-cama as oferendas noturnas: meus sonhos, fracassos e minhas divagações. Oferenda precisa, para que se possa levantar mais um dia.
quarta-feira, 31 de março de 2010
Legal! Sou foda, e agora?
Achava que era só na faculdade. Não, não.
Essa raça medíocre está em todo lugar, essas tentativas de protótipo de criatura qualquer.
Quem dera fosse alguma criatura qualquer, mas não.
Um esboço de brumas dum certo pântano, um pegajoso que cola e gora.
Hoje em dia se fala que nós, elite intelectual estamos trabalhando para a "transformação social", e assim utilizam estas palavras ocras, vazias de si e de qualquer coisa que haja apenas para justificar uma escola aqui e outra universidade ali.
A única coisa de social que a universidade tem é o sistema de cotas, onde brincamos de "formação do cidadão" e "seleção mais justa", coloca três negros gato pingados, alguns que pela sua condição não são capazes de se manter na universidade. Ou seja, que merda de social. Detalhe, a maioria se não ouso dizer que são brancos, ouso dizer que são nipônicos, e a despeito dos que tem aqueles caridosos corações que intoxicam de tanta bondade, a única transformação que ocorre e ocorrerá é a adição de uma grife em seu cúrriculo.
Brincamos de ser profundos numa realidade que ninguém leva a sério: alguns brincam de dialética, acreditam no futuro da revolução, e outros dizem simplesmente: pau no seu cu!
De fato, sou mais fã do pau no seu cu do que ficar brincando de revolução, onde de um facismo passaremos a outro, senão é o capital, pode ter certeza o totalitarismo está a espera em qualquer canto, em qualquer ação unificadora, bondosa, que nos livre da angústia de bem existir.
É tão difícil ser ético sem ser moral? Para conviver têm-se que ter e obedecer os mesmo princípios que todos?
O palavreado pode estar grotesco, mas para um mundo - que não vamos ser ingênuos de cair no interpretacionismo, onde cada um acha que seu mundo pode ser uma maravilha pois acredita na falácia do pensamento positivo - que a toda hora faz o prazer de viver sumir do mapa, eu me pergunto, pra quê esse mundo?
Um enorme Midas meio Lich, meio zumbi, em que sua mão literalmente faz tudo virar ouro, opaco, sem viço - é ouro latão, não brilha. Seu manto é a morte e destruição, e sim, ele é Golias que de sua alta torre vê tudo.
Se tenho falado mais da faculdade, é porque o desencanto com o resto é inclusive pior. Porém, mesmo que o mundo seja composto de enguias e seu charco, não é por isso que me submeterei a esse pantâno de "humanidade". E não serei eu a ser a luz redentora que fará as enguias se tornarem, ao menos, criaturas. Essa pica não é minha. Não vou brincar de mudar o mundo. É tosco demais. Quem muda o mundo não sabe o que está fazendo! Falam em abstrato de paz, amor e toda essa parafernália. Não sei se rio ou cuspo na cara destas enguias, endeusam esta abstração cadavérica que é o Homem, e este mata a si mesmo - se é que teve vida para ser tirada.
Enquanto isto, na nossa iluminada Igreja da Razão Universal, uma aula de como brincar de Deus e ser escroto como pesquisador, tentando provar aquilo que deseja ser verdade. Não sabe afirmar sua invenção, espera que alguém reconheça, e por que não esse mercado diplomático?
Eu sei que sou foda, e podem falar que eu sou narcisista, egocêntrico e sou o pecado capital do orgulho. Mas não sou o único - excelentes pessoas estão ao meu redor, e sei que se quisessemos poderíamos fazer diferente, mas a questão é: vale a pena universalizar?
domingo, 21 de março de 2010
finding buddies
O irmão se identifica no outro, tomado como espelho seu umbiguismo, de seu narcisismo. O irmão não é uma aliança, mas uma submissão. É a vida que se expande circunscrita na prisão do identifismo, e que logo degenera nas paredes do rígido sufrágio universal - onde todos nos filiamos à uma raça humana, "não-animal", a uma instância neutra capaz de julgar a todos sob o prisma da navalha racional, essa lâmina branca portada pelo barbeiro. Corta o pêlo que remete à placenta animal, essa via que traz uma vida potente demais para os modelos pós-estabelecidos.
A questão não é o irmão, ou mesmo aquele em que haja uma relação de vizinhança. Amizade de iguais não é amizade, mas necessidade para com sujeitos empobrecidos, não capazes de assegurar a diferença que se desenha em seus corpos. No fracasso da afirmação do corpo, espera-se um reconhecimento exterior - o grande Outro que nos consola com a "verdade", seja o pai, o filho, o Estado ou o irmão.
A questão então não é, definitivamente, procurar semelhanças, mas sim em como encontrar alianças. Aí que se constitui a amizade, no campo de forças de interpretação, e não nos modelos representacionais. Componho uma aliança com o outro não por igualdade, mas porque ambos queremos expandir, ampliar aquilo que nos faz viver, e ampliar é toda hora sair da identidade e da representação - é compor novas interpretações das forças.
Uma nova interpretação só surge de um encontro, e a nova configuração surge da desconfiguração do original. Não é um simulacro que degenera da Idéia pura e abstrata. Mas um campo que continuamente se diferencia em si mesmo, que se desestabiliza de seu hábito para uma nova possibilidade de existir. Encontrar é diferir, mas apenas encontrar não basta.
O encontro pode nos promover a ação, assim como pode padecer nosso corpo. Logo a questão é ter prudência, nem todo encontro é potente, não é encontrar, apenas, que cria a amizade e a aliança. Há de fato encontros que impotencializam os homens e demais seres. O encontro produz. Ponto. O que se faz com a produção? O que se faz com a consequente produção que devém da produção? O que fazer com a produção de registros, de referenciações, de consumos, de distribuições? Temos que digerir o encontro, temos que digerir o processo.
Antropofagia, comer o homem, mas não apenas o homem, deve-se comer o inumano, o orgânico e o inorgânico para compor. Amizade é devorar bem o outro. Compor-se do outro. Compor-se com o outro que te devora. Encontra-se, come-se, digere-se, assimila-se, e por fim (e um novo começo), outra-se.
O irmão é a lei do incesto, uma impossibilidade, pois não há o que comer aqui. Não há encontro possível pois estamos presos sob a mesma redoma, somente diferindo e transgredindo esta redomas é que estabelecemos interfaces, planos de contato, linhas de fuga e de encontro. Aí se tece a amizade, num jogo de encontro e fuga, de desejo pelo que vive, de compor-se com aquilo que do outro é vital a mim, e de escapar do que é venenoso a mim. Digiro isso. Dirijo isso.
Faço aliança contigo que me é estranho. Já não sou mais o mesmo, outrei-me. Novamente busco estabelecer outras regiões de contato, pois já não somos os mesmos. É uma tarefa sem fim a amizade, é encontrar alianças, tecer corpos, compor uma poética de nossa existência. A grande aventura da existência: amizade.
quinta-feira, 11 de março de 2010
Enguia não é coringa!
Querem criar pesquisadores autônomos, criativos e sensíveis às tranformações sociais sendo chancelados pelo capital. Chancelados em completa submissão. O que se faz lá não é educação, não é formação de cidadãos ou mesmo qualquer ser pensante. O que se faz lá é tranformar águias, golfinhos e os mais exóticos animais em uma enguia acéfala.
Em sua grade horária engaiola animais maravilhosos, os quais enjaulados atrofiam suas capacidades e qualidades. A academia é anti-criativa! Achata todos a um mesmo nível basal em que as enguias vivem sem necessitar ir além. Seguem suas receitas de bolo para não sair desse charco universitário onde brincam de deuses ausentes de uma sociedade imaginária.
E depois colocam essas enguias para voar, para guiar, para mergulhar. Mas tudo que elas fazem é se debater! Medianas em tudo! E eis nosso futuro: um futuro mediano que busca a eternidade de sua decrepitude. Apenas o vil necessita ser eterno, pois é assim que estende suas redes de poder onde vampiriza ali onde há vitalidade, há potência, aquilo que não é enguia!
E querem comparar a enguia com o coringa das cartas, aquele que vale tudo, mas a enguia é o 8 o 9 e o 10 do jogo de truco: não têm valor no jogo! Enguia não é faz tudo! Enguia é medíocre!
Essa igreja universal da razão não tá com nada. Quando vão perceber que ENGUIA NÃO É CORINGA!?!?
quinta-feira, 4 de março de 2010
UTI...
Pelas ruas da cidade fui a passos cambaleantes, um marginal sem rumo. Eis que surge um pequeno ser acomodado por seu mãe-móvel. Era uma garotinha de olhos castanhos, morena e tuas mãos eram uma arma. Mirou-me e num certeiro tiro, silencioso ao mundo adulto, desestabilizou meu corpo. Quase cai, organicamente falando. Uma surpresa, estranha e cruel. Por pouco o corpo não fica estatelado na faixa de pedestres, mas o corpo seguiu em frente.
Aquele invisível tiro acertou uma invisível camada que estava carregando. O corpo seguia, mas eu estava lá, com as mãos de sangue da cor do céu, fui ferido, abatido. Seres perigosos esses pequenos humanos. Meu corpo já estava longe, rumo a um destino que não conhecia muito bem, e eu vendo o céu, os carros passarem por mim. Eu estou morrendo, estou numa sala de hospital qualquer loteada de máquinas e soro. Um branco total. Minha companhia é um aparelho que faz bip, bip, bip.
Enquanto isso meu corpo está lá, entrando em um estranho edifício. Ele está conversando, conversa com outros corpos, mas será que esses corpos passaram pelo mesmo que eu? Acho que a pergunta foi meio incompreensível. Eu quero dizer, essa experiência que fui esses corpos também a tem? Bem, ao menos ele não parece fazer muita questão, está seguindo adiante a uma sala com uma cadeira.
Hoje perdi a virgindade de meu sangue. Já não é mais meu. Amores perdidos vindo a tona, dessabores mostrados numa tipagem. Sou filho de alguém, lá está dito. Mas o exposto me lança em outro contorno, minha história em um conta-gotas, e a confirmação de minha morte a poucos passos.
Um tubo de sangue por um cartão, minha carta de alforria. Rio agora da cara da morte, como Sifiso o fazia. Quer seja o resultado, já não fugirei de tua raia. Se necessário serei necrófago, te devorarei sem fim, até o último de meus dias. Tu será o alimento que me sustenta, não te temo apesar dos arrepios que me provoca. Tua foice me decepou, tirou o pé que me sustinha, e agora sou bambo, mas tua foice será minha muleta.
Tua máscara já não me engana, e viverei em teus braços, sua ardilosa vida...
biiiiiiiiiiiip...
quarta-feira, 3 de março de 2010
Secura
Sinto que está tão perto, quase uma intuição o diz. Mas o panorama de minha visão não me permite escapar das areias do deserto. Sigo a encontrar em meios as dunas. O que quero encontar? Não sei. Pensei em dizer que o que procuro é algo que mate essa secura, essa desidratação existencial que me submeti, mas seria uma mentira. Estou em busca. Em busca de algo que não sei nem o contorno, não faço a mínima noção. O vulto de um sonho que se torna um obsessivo encosto. Um abalo sísmico do deserto, uma reconfiguração do jogo.
Mas eu estou ouvindo o canto das areias, algo que se estivesse saciado, não ouviria. E suas canções me tocam, me nomadizam. Essa secura da boca me sutilizou os sentidos. Um afinamento das cordas que me vibram. Necessidade vital: sede. Estar sedento para criar, o que não é ter sede de criar. O que urge no primeiro estado é superior ao segundo, pois o que o alimenta é a assimetria. O segundo tipo não é vital, é showroom.
Não há motivos para showrooms na imensidão. Apenas o que é vital ao peregrinar.
terça-feira, 2 de março de 2010
açougue literário
corpos de escritores com suas obras tatuadas
o açougueiro pergunta:
-qual parte você quer? A coxa de Graciliano Ramos ou bife de Alberto Caeiro?
o consumidor responde:
- me vê o peito de Clarice Lispector!
e cada vez mais autores se tornam suas partes...
domingo, 28 de fevereiro de 2010
Areias de marte
A boca sente sede, está seca, mas não é água que a supre. Não... é outra sede. O corpo também não é o mesmo. Sei que habito diferentes corpos no espaço, que não sou algo que se restringe a um corpo orgânico, apesar que esse mesmo corpo orgânico não é apenas meu lar. Tais corpos são tendas. Tendas de um espírito nômade. Mas não são tendas de meu espírito nômade.
Da boca amarga escorre areia vermelha, o corpo ficou muito tempo no chão. E agora está a ser soterrado pelas tempestades marcianas.O corpo fica constrangido, as palavras constrangem, e a areia adentra. Fui infectado pela gravidade das coisas, tornei-me pesado como dizem que elas são. Fiquei tempo demais parado. É tarde demais para esse corpo. Corpo marciano. Passo, mas já não habito mais.
Agora tenho que ter prudência com os outros corpos que habito. Não soterrá-los com minha dureza, minha amargura, meu ressentimento. Seria uma crueldade soterrar esses corpos, apenas por eu querer me manter feito bicho-preguiça debaixo de uma tenda por tempo demais. As tempestades vêm a revelia de minha vontade. Peregrino não por vontade, mas por necessidade.
O nomadismo é minha vitalidade, minha liberdade. Liberdade que não faz parte dos quereres da vida. Necessidade que me faz escolher entre esse ou aquele caminho, deixando antigas tendas e suas tempestades para viver na imensidão do deserto.
domingo, 21 de fevereiro de 2010
Geocracia - vida plena
Para isso se apoia em noções que considera infalíveis: democracia e liberdade de expressão. Democracia foi uma noção captada nos últimos tempos de uma arqueologia aos costumes da antiga grécia, local onde o sujeito não é individual, ou mesmo senhor supremo de sua ação. O sujeito dessa democracia, ou cidadão como preferem alguns, não era representado, ele era atuante da política - política de si, política de sua casa, política da pólis. Na sociedade que não cessa de se atualizar hoje, não cessam de nos reprogramar como indivíduos, com nossa imútavel realidade interior, pura onde nada de exterior possa mutar-nos. Cada um em seu formato bola de gude, se(ndo) atira(n)do nas redes de relações. O indíviduo teima em dizer que sua vontade vem de dentro, que é pessoalística e intransferível. Na real, temos mais impessoalidades do que gostariamos pensar em ter. Achamos que temos tesão por um corpo porque ele ativou recursos de nossa história infantil, o primado do coito na mente, e achamos isso totalmente particular à famosa "história de vida" que todo indivíduo carrega. Altares onde os cadáveres adquirem uma sobrevida e podem se procriar, realimentado a carne nefasta que se apodrece. Como diria um poeta
o passado não reconhece seu lugar: está sempre presente - Mário Quintana
A liberdade de expressão recai na mesma chave da imutabilidade essencial de um ser que autonomamente constrói a si. Lhe é varrido da memória que seu próprio pensamento é carregado de um discurso que passa por universos coletivos, arquiteturais, políticos. A fantasia que o criou é eleita como o céu que recobre a terra, mas não são capazes de ver que tal céu é um imenso guarda-chuva, cuja haste se infiltra na terra. O céu que nós vemos brota da terra que pisamos. Vivemos entre este chão e nossas fantasias. Ao guiar-mo-nos pelas estrelas, não somos tão livres assim, sempre estamos nos referenciando a algo, seja ao instinto, seja à linguagem, seja à um código. A liberdade que nos é possível não deriva da escolha entre uma ou outra chave de pensamento, mas da contínua construção de chaves de pensamento, de modulações que permitam a vida agir em sua alegria, em sua potência expansiva.
Liberdade é alegria, mas jamais alegria individual. O humano é um folheado sincrônico de corpos. Se o outro que não nos afeta é alegria, não poderemos nos dizer livres, apenas parcialmente livres. São folhas transpostas de temporalidades, de corpos humanos e inumanos, corpos materiais e virtuais. E é na alegria de uma ética que se pauta no vivido, e não de uma moral nascida da angústia de viver que não nós, mas o mundo se torna livre.
quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010
10 passos para meia-noite
tempo apenas para 10 passos
10 gestos precisos
Passo 1 - Sol já não há mais
As luzes se apagaram, já não há mais uma grande entidade que sirva de guia
olha-se para cima, o sol já se pôs. A escuridão já sucede aos céus
Passo 2 - A percepção
Ao longe vemos estrelas, vemos uma lua. Reflexos de uma luz que já não vinga mais, mas que mesmo assim, por enquanto, nos guiamos a guisa da falta das totalizações solares
Passo 3 - Ao longe a luz é mais confortável
So o sol cega, é que a presença da luz é nefasta. O sol e seus avatares prometem paraísos guardados a espadas flamejantes - o custo? A cicatriz do fogo na alma
Passo 4 - A lua nos guia a rédeas curtas
Mesmo que a lua nos seja mais agradável ao toque, seus fins são os mesmos que o sol. Diferença: o sol marca, a lua seduz
Passo 5 - Starfall
O firmamento do céu começa há ruir. O sol desapareceu, a lua se apagou. Estrelas e agregados caim na terra, luzes cadentes de um natal não-realizado. Não há mais céu que nos guie
Passo 6 - Dança com poeira de estrela
Tudo se desfez, sem os operadores da ordem, os apêndices vieram de encontro a terra. Uma grande nuvem de poeira, poeira estelar, que lhe convida a uma dança
Passo 7 - Um estranho silfo
Ventos que animam nossos corpos dialogam com tais ruínas imperiais. Algo em nós suscita uma forma lá. Dá-se luz a novos seres
Passo 8 - Revolta da carne
Tais elementais de poeira não sobrevivem por si. Devem tomar corpos pra se expressarem. Grudam, mascam a carne, integram-se a ela. Teus criadores já não são mais os mesmos
Passo 9 - Escuridão
Os olhos que nos guiavam foram devorados. Já não podemos ver segundo a luz. Os avatares astrais já escapam a nossa visão,e nós, de seu fetiche
Passo 10 -
terça-feira, 16 de fevereiro de 2010
Cronofagia
mais redemoinhos, mais solapamentos
quedas, rupturas, vertigens
as linhas do tempo estão a desfazer-se
desmoronar-se, desfiar-se
o tempo já não é o mesmo
o tempo já se faz outro
bota ovos, choca-os
ovos cronogenéticos
ovos de outros tempos
mas falta-nos deglutir o tempo
deglutir suas criações
há um excesso de tempo
está muito cozido
já não dá mais pra comer
já não há mais prazer em come-lo
tudo já está temperado em demasia
e devorá-lo assim, causa indigestão
precisamos fazer como os japoneses e seus sashimis
comer o peixe cru
comer o tempo cru
e deixar digerir
para nos usar dele em nossa existência
e não fazer dele nossa existência
segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010
quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010
Pactos com a neutralidade
o neutro espera o futuro chegar para tomar uma decisão: ver o passado através das lentes que os parciais dominantes engendraram na história monumental
se os homens dizem-se neutro por compactuarem com fatos da pretensa "realidade universal", já denunciam a própria parcialidade subjacente ao ato de ser neutro
não existe um neutro transcedental, um território onde a ordem se regozija-se de um equilíbrio que não penda para nenhum dos braços da balança
única realidade que podemos apreender é a realidade humana, e a única ordem possível é de caráter humano, e por tal, necessariamente um ato de invenção
uma ordem humana é dada por uma consistência deste ato de invenção, por sua capacidade de durar e de sua autopoiese, ou seja, sua capacidade de a partir de seus próprios elementos mais os do campo reciclar-se
mas a ordem, assim como as técnicas que a produzem, além de se tornarem seus próprios objetos, imbricam-se como fontes instituintes de si mesmas. Assim, a invenção que toma consistência torna-se a própria fonte que institui sua duração, e a ordem fará o mesmo.
como não há ordem transcendental possível que a realidade humana apreenda em sua forma pura, a única ordem possível para o homem é uma ordem imanente, então antes de haver ordem humana lá estará o homem, e consequentemente para que a ordem continue ela depende da reprodução de seus elementos constituintes pelo homem.
Dessa forma a ordem não se reproduz em abstrato, nem a ciência, nem a técnica. São homem que fazem pactos com tais aparatos, e se fazem tais pactos é por interesse, e todo interesse é irremediavelmente parcial.
Disto se conclui que quaisquer que sejam os elementos trabalhados para constituir uma ordem, uma técnica ou uma ciência não são de modo algum neutros, pois o pacto necessita de uma escolha e seu consequente engajamento num mundo possível dentro do mundo humano.
e o homem faz escolhas não é por factualidades, mas por crenças de que aquele mundo que ele escolhe é o melhor dos mundos possíveis, e segundo a apreensão que tem da realidade humana, tal mundo é o melhor mundo possível a ser escolhido, pois o homem só pode escolher o maior prazer possível dentro de seu alcance.
ai que jaz a problemática do neutro. Uma ordem que se diz neutra, uma técnica que ignora a criação de universos psicossociais subjacente a seu (des)uso ou uma ciência que busca universalizar a linguagem fazem parte da formação de um tipo de sujeito, o sujeito parcial-neutro, o sujeito sem qualidades, útopico e sem gênero que se encaixaria como peça fundante de tais aparatos.
o neutro diz não escolher, mas escolhe a neutralidade, faz um pacto com a ordem neutra e reduz-se a um estado estático. Sua escolha é a inação, pois um mundo que é inativo é o seu melhor possível. Porém uma máquina inativa não é funcional, e por analogia um mundo inativo não é funcional e estará destinado ao colapso.
Mas dizem as ciências e as técnicas serem neutras, mas elas apresentam uma funcionalidade, logo elas não são inativas, e consequentemente não são neutras. Um de seus efeitos é a produção desse sujeito "neutro" que julga constituir este mundo melhor neutralizado, o que constitui nem um paradoxo, mas uma impossibilidade humana já que o mundo humano é parcial, não sendo passível de neutralização por parte humana, salvo a dizimação de todo e qualquer mundo humano.
Tal opção não nos cabe, e se o ocorrer, pouco nos interessa pois o que restar não o será humano, e por tal, não apreensível por nós.
De resto, o humano é nefastamente/graciosamente parcial
segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010
Reprodução assistida!?
cada tempo, cada rodar das engrenagens
sem cessar alimentam máquinas
máquinas de sonhos dissipados
oleiam este tic-tac descompassado
máquinas de pensamento asséptico
máquinas de reiteração
a novidade hoje é peculiar
preservativos mentais
para que não se infecte com os pensamentos de outrem
o fantasma do HIV já não é mais só do corpo
tomam cuidado com todo sêmen, toda fluidificação
pois ao menor contato, correm riscos
ficarem a mercê do mundo sem seus clichês reparadores
ou pior- ficarem grávidos de idéias.
Quanto à falta de clichês, logo outros surgirão
mais rígidos e perversos para com tudo que vive
Já do outro lado...
Quem gesta o gozo do outro passa por apuros
de manhã o coito,
de tarde a gestação,
de noite o parto
Sêmen não querido, inoportuno
é diferença que se forma
e em dias paulistanos, quem sabe nova-iorquinos também
é a rotina que conta - a segurança inabalável do mesmo
arrasta-nos pra campos dos quais não compactuavamos
e a desconfiança do momento nos livra de tais pactos nefastos
pactuo minha alma com a tua, e ambas desaparecem
me esquivo de tua alma e vivo, e engravido de ti
e uma nova coisa surge, diferente de eu e de você
e a diferença ora me gratifica, ora me arrasa
mas idéias que nasceram prematuras, logo colapsam
outras nascem na UTI
e muitas precisam ser abortadas
- não se suporta a gestação
para acabar com o mal-estar
aspirina
meditação
reza
relaxamento
estas táticas que adiam a guerra que jaz em nós
mas para evitar isso, o mal-estar desde já
preservativos mentais
escolha sua teoria, escolha seu filtro
viva de um pensamento asséptico, que se reproduz
ou melhor, que sobrevive
o pensamento pode ser bissexual, mas não é hermafrodita
nada de novo acontece sem parceiros - antigos ou novos
a masturbação mental está em alta para paulistanos
e o sexo definha entre quatro paredes...
sábado, 23 de janeiro de 2010
Diagnósticos de uma vida contemporânea
A mulher que é obsessiva-compulsiva...
A vizinha neurótica...
O parente esquizofrênico...
Tudo é diagnóstico
Somos nosso próprio diagnóstico
Covardes até o túmulo
Buscai em palavras qualquer o sentido
E ria aquele diabo de asas negras
Rindo daquele covarde que da vida fugia
Entrava no mundo das palavras, dos grifos
E era soterrado pelas epígrafes
Raspava toda pele - criatura neurótica
E colava signos, nada mais que letras
Para que naquele lugar já nada sentisse
Somos covardes
Deserdamos pele, pêlos, tripas
Em troca dum punhado de papel
Não à toa que o diabo ri, que o animal ri,
Deus ri do medo do homem com tua obra
Este ser que tapa a cara para não ver
Odeia cheirar - e tudo que toca, toma cuidado
Vai que tira os jornais de teus ossos?
Como poderíamos viver?
Sem nosso diagnóstico cotidiano?
Pra saber quem somos precisamos de uma doença no espelho
Doença, eis nosso nome