domingo, 30 de maio de 2010
Recados para um desconhecido
Visitante sem rosto, se me permite lhe dirigir algumas palavras, fique atento.
Não prossiga, pois cá não encontrará as bases de um progresso.
Não persiga, aqui não rege a lei da selva humana.
Não me siga, se não quer cair nos meus buracos.
Não me seja fiel, pois não há história para se reportar.
Aqui de homem, nada encontrará além da pele.
Vísceras, músculos e ossos foram destituídos. Pele desossada.
Uma bela imagem, moldada por artistas perspicazes. Mas é pele.
Não confunda pele com derme: a pelagem que nos recobre não se reduz aí.
Para dentro se avança num vazio sem rumo. Mas o que é o rumo pro vazio?
Tentativa de, movimento de. Mas não se objetiva.
Pele adentro a gente se sufoca nas dobras.
Tão vivas, nos emergem, nos raptam.
É de pele que somos feitos. E estamos diante de um frio desconhecido.
Buscamos todas que já passaram, cada pele que já vingou, e nos agasalhamos.
E entramos num paradoxo, quanto mais pele, mais frio sentimos.
Que é esse desconhecido que queremos tapar a todo custo?
Há um abismo gélido à nossa espreita? Mas qual o medo?
Por que não? Por que não o abismo? Quem sabe seja a pele o abismo.
Quem sabe é a pele o frio.
É hora de descamar, lixar esta pelagem e sair do terminal.
Visitante desconhecido, você não é mais o mesmo.
Bem-vindo
sexta-feira, 28 de maio de 2010
Inumanizar
segunda-feira, 10 de maio de 2010
Procura-se artesãos
Procura-se artesãos que ficam enquanto nós vamos em nossa pressa.
Procura-se, procura-se, procura-se sem fim.
Artesão outro que não satisfaz meu desejo, pois é do outro ser alheio a mim.
Comecei lá trás a correr, não sei o porque, mas parece que a estrada incita a velocidade.
A alma das estradas é puro movimento, é vertigem ao limite.
Tão vertigem que toca suas pontas, e seguimos rodando. Roda sem fim
E aceleramos na abstração, o reino dos pulsos.
Pulsa um. Pulsa dois. Pulsa três. Continua pulsando.
Pulsa e retorna, lança-se de sua origem para atingí-la.
Mas no pulso vemos a desmetaforização da vida.
Cada vez mais fica difícil encontrar artesãos pela estrada.
Se encontra estruturas metálicas, blindadas e bem fechadas, isoladas.
Não, não são carros, são seres autênticos: autênticos seres humanos.
Parece que todos chegaram a uma vertigem que os torna intocáveis.
Mas o preço da ausência de contato é uma busca, parece que algo falta.
Procura-se uma obra que complete. Mesmo que por um instante.
Mas não há obra que complete, pois é impossível completar.
Artesão parava na estrada e fabricava.
Artesão terminava coisa, e dessa coisa já não era mais o mesmo.
Artesão nunca foi autêntico. Artesão é sombra de criação.
Repete movimento ofuscado e desliza. Torce o pé. Beira à estrada.
Parado entrevê passagem desses seres autênticos, e da penumbra realiza.
Que é o artesão senão aquele que cria à deriva? Ser determinado, jamais autêntico.
Determinado? Determinado a desejar, ser que por existir deseja, deseja a vida.
Artesão cria suas própria metáforas.
Este reino luminoso do abstrato não lhe pertence, o artesão de fato é falso.
O verdadeiro é técnico, faz muito bem seu trabalho, e determina-se a ser o que se é.
Verdadeiro são palavras, palavras que viram meus olhos. Mas nunca fui muito autêntico mesmo.
Desejo parar na estrada, deixar de ser humano, apenas parecer sê-lo.
Não vejo muita graça em ser, ou completar quadradinhos.
Desejo algo que me é alheio, para tornar-me outro.
Desejo viver, pois é ela que me difere.
Desejo, desejo, desejo.
A vida é minha suave artesã
sexta-feira, 7 de maio de 2010
Urso polar à deriva
Coragem...
Era uma nuvem de algodão que ao meio de tudo possuía um ponto molhado e preto. Grande, quando ficava de pé botava medo naqueles ao redor. Mas o gigante mal se punha de pé, ao contrário, deixava que se acomodassem em seus macios tufos cor de neve.
Sonolento em teu reino, um gélido pedaço de pedra à deriva no mar. Vagarosamente sentado no centro da rocha. Mesmo com suas vigorosas patas que poderiam partir árvores ao meio, tinha medo de sair de seu lugar. Tanto poder que jamais sairia da concha, pelo medo do vão. Quando pequeno, quando ainda uma bolinha de pêlos, passeava pelos redores da pedra, mas foi crescendo com medo do mar.
Era um urso polar que não sabia nadar. Mas por medo de nadar, já não andava. Ficava lá, em seu centrinho, encolhido com as patas sobre o queixo – apenas olhava o movimento. Às vezes ensaiava um pequeno movimento, uma dança com o vento, mas quando sentia a terra vibrar, seus ossos tremiam, e o urso enchia-se de medo. Recolhia-se como se nunca mais fosse se mover.
Ao que ele se guardava? Acho que nem ele sabia. Por que tantas travas, tantos medos? Por que não dançar quando se ama? Queria eu saber as respostas, inventar um final feliz pro urso. Coragem...
Queria tanto que esse urso tivesse coragem para ir às bordas da pedra e tocar o mar, mas não. Eu não tenho coragem de escrever este final, eu não sei escrevê-lo. Queria poder, mas é mais forte que eu. Não sei, me parece que se inventar esse final para o urso, terei eu que dançar com a vida. Dúvidas, dúvidas, dúvidas...