segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Tua pele expirou

E o corpo lhe pede passagem, mas tu, ainda preso em tuas anatomias, mantém-se. O corpo lhe pede passagem, mas tu, ainda preso em tuas autonomias, mantém-se. O corpo lhe pede passagem, mas tu, ainda preso em tuas automatias, mantém-se. Que há de tu que mantém-se? Que há de insistência naquele olhar? Que há de resistência naquela gagueira? Naquela pele que se desfez, naquela pele que se rasgou, naquela pele que se destacou, o que lhe restava? O que lhe restava? Tua pele e teu mundo, em atrito. Tua pele e teu mundo, ao detrito. Que lhe acontecera? Que lhe acontecerá, homem sem pele? Sabia de tuas inconsequências, sabia de tuas desrazões. Sabia de teus limites pelos vácuos que me ofertara. E agora, sem pele a percorrer, que distância lhe protege? Que distância lhe guarda, e aguarda? Homem sem pele, por que corres tanto? Não há lugar de retorno, não há origem de uma nova pele. O que lhe aguarda não mais é orgânico. Teu direito expirou. Não há pele, ou organismo reservado a ti. Hás de lidar com o intempestivo. Hás de lidar com a tempestade que jaz. Medo? Não estremeça frente alguns trovões, afinal de contas, eles sempre lhe fizeram parte. Modestia chamá-los de partes quando tu é puro relâmpago, instantâneo e devastador. Homem sem pele, destituído de toda fáscia, que resta de ti? Não mais derme, não mais carne, não mais osso. Tua anatomia expirou. Teu regime se esfacela. Tuas entranhas, puro movimento. Estranhas formigações, fornicações de estranhos. Já não mais um líquido ou sólido que o atravessam, mas setas, setas caóticas, não-lineares. Que trajeto percorrem num corpo não mais anatômico? Que passagens pedem um retorno, que memórias entram em jogo? Quem evoca, quem convoca? Não mais teus cárceres, não mais a pele. Tua prisão expirou. Livre do direito, eis teu jogo não mais em termos de morte

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Existe crime maior?

Ofensa, avareza, escambo! Há algo que lhe falta?
disse tin-tin por tin-tin, não me ouviste
agora indignado, se insurge
em meio a lingeries e suspeitas brumas
diz-me ser um assassino, um assassino de si mesmo
sem saber ao certo o como
estranho como,
como alguém se mata sem cometer um suicídio?
E mesmo assim, se insurge
Cansou, esgotou, odiou! Há algo que lhe resta?
disse a tantas por entre tantos, não me escutaste
agora braveja
em meio a fantasias, braveja
e este como lhe atravessa
por isso odeia tanto essa ofensa maior
avaro deste crime incontido
estranho à sua própria morte
como um homem comum

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Encontros literários - VI

- É sujo...
disse o menino ao então desconhecido
havia de encontrar alguns pensamentos
algumas dores
outras fantasias
mas o menino reiterou
- é sujo...
- é arriscado...
preservou-se como nenhum outro
nem lama, nem pó ou sujeira alguma
colocavam em desvio aqueles implacáveis olhos
e aquela frase não mais autônoma
mas autômata
se pronunciava ao desconhecido mais uma breve vez
antes do desconhecido que pede um adeus
- é sujo...

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Artaud e Meireles num encontro saramagal

Eis Meireles quando diz não serei eu e que as datas as coisas os retratos o que foi dito e o que foi ouvido não será eu outra coisa apenas e que a unidade possível é uma breve unidade passional quebranta rachada lacônica de instantes mínimos em que a coesão produz o eu coesão díficil não forjada pelas sutis invenções nem as espertas engenhosidades eis Artaud que abomina a cruz e vive pelo osso arriscando a mostrar-se no osso diferentemente dos homens que se escondiam pela carne Artaud uma criatura louca que pergunta Deus é ser seguida da afirmação Deus é percevejo que se nutre do sangue dos corpos que ainda persistem em serem corpos Artaud uma criatura do apetite mas não da fome sufocado pela idéia de ser um corpo por produzir um gás fétido sufocarem-no com a insistência das perguntas até a ausência a anulação da própria pergunta Meireles e Artaud pecam Meireles e Artaud pecam pelos excessos de tua presença e pelos rumos de tua ausência de sentido ainda mais quando entram em contato pele a pele com mais um daqueles que já não habitam a carne enfim Saramago três habitantes da terra dos ossos que persistem a viver na insistência de nossos corpos e em intermezzo de nossas unidades celulares Artaud grita Artaud ruge contra a célula e o micróbio estes últimos ostentadores do juízo de Deus e Meireles pacificadora de tamanha vulcânidade de canção magmática invade corações fígados e intestinos com a coragem do não saber num encontro inusitado e cansativo inexplicável para levar à esta pequena razão da mente isto que é para além da existência e sua significação três viventes que enganaram a morte deliraram em intensas biografias estas espécies de ontologias na abrupta presenças dos corpos a vida que inspira o pensamento de modo que este a leve aos saltos saltos não escritos na história mas escritos à pele tingidos na memória os cortes as cisões os desgastes rupturas tingir na memória as quedas bruscas e sem fundo que levam uns à lua e outros aos balcões três ossaturas de inumeráveis constelações de identificação impossível na fuga de todo automatismo da ordem e do juízo numa revolução que não há lugar nem mesmo o lugar do corpo.