quinta-feira, 25 de novembro de 2010

A velha e a pequena

Havia uma velha confeiteira às margens do rio, numa casa com tantas chaminés quanto encomendas à confeiteira. Ela acordava bem cedinho para ir ao mercado da cidade, comprar os ingredientes, à tarde fabricava seus pães e panetones, e ao beirar a noite, pedia a seus netos que entregassem suas deliciosas encomendas, para que cada família daquele vilarejo e daquela cidade houvesse ao menos um de seus pães sobre cada mesa. Só não o fazia aos domingos, quando a velha se dedicava à invenção de novos doces e receitas com seus netos.

Havia um boato de que um homem de estudos iria habitar a cidade, o povo ficava orgulhoso de tamanha figura, apenas duas pessoas do povoado não viam sua chegada com bons olhos. A cigana da cidade advertiu que maus ventos o trazem, e os homens mais fortes trataram de bani-la da cidade. A outra contestadora, era uma contestadora silenciosa, miúda, simplesmente via algo estranho se aproximando, e com frio na barriga pegou seu triciclo e voltou ao colo da velha para adverti-la deste homem.

A velha era de grande sensibilidade às suas fabricações, mas aos agudos clamores da menina permanecia surda. A pequena neta foi-se dormir em vão, não sem antes como de costume sentar-se à beira do rio e tacar-lhe algumas pedras. O que a pequena não havia visto, nem ninguém do povoado, que apenas a cigana via, pois tua visão era de outros mundos, era a coluna de fumaça no horizonte que rivalizava com as obras dos céus, uma estranha ambição da negra fuligem em tocar as estrelas. O homem de estudos chegava à cidade.

Com canções, marchas e fogos de deixar a população maravilhada, o homem de estudos acordou toda a cidade, enquanto o vilarejo ouvia apenas algumas explosões abafadas. Conversava em praça pública o quanto a cidade tinha a melhorar, ao padeiro fornos e esteira automáticos para livrar-lhe o trabalho de assar seus pães, à costureira teares mecânicos que produziriam em um dia o que ela fazia manualmente em um mês, ao sapateiro uma máquina de fazer calçados. O homem de estudos, cheio de boas intenções e de progressos, agora pairava no centro das atenções da cidade.

O povo do vilarejo que ouviu os estouros finalmente chegava à cidade, mas estranhamente esta já não era a mesma, as antigas charretes agora davam lugar a máquinas de rodas que expeliam negras nuvens a cada quarteirão. A cidade era outra. Assim como o padeiro, a costureira e o sapateiro eram outros. A cidade antes fundada solidamente entre os morros à leste das montanhas passou a crescer, e crescer, e crescer. Mal se percebeu e o vilarejo e a cidade eram um só, mas quem era da cidade, não era um com quem era do vilarejo. Uma pequena diferença de origem diziam, e o trato antes respeitoso foi trocado por gélidos olhares de estátuas, revidados com amargura e ressentimento.


Mas a boa intenção do homem de estudos não parava ai, seu sonho era juntar todos. Havia juntado cidade e vilarejo, levado progresso e fortuna, mas ainda faltava em seus planos estratégicos uma certa casa de chaminés agora reduzidas, pois não se comiam mais pães doces no jantar. Na porta de madeira de lei, o homem de estudos estacionou, bateu uma vez, bateu duas, bateu três. Se esquecera que já era tarde da noite, pois as luzes do progresso emanavam agora de todo canto, fazendo com que até o homem de estudos não soubesse o tempo além dos horizontes da cidade.


A pequena neta abriu sorrateiramente seus olhos, ficou aflita. Uma intuição de criança que era surda à mente dos adultos, e mesmo assim foi alertar à velha das sombras do homem. Como boa anfitriã, a velha acordada pela neta agora abria a porta ao homem de estudos, convidando-o a tomar uma xícara de café. Mal sentou-se à mesa, o homem começou a lhe ofertar propostas de industrialização, propostas de tornar o panetone um produto dos mercados crescentes da cidade, propostas e mais propostas foram feitas, mas a velha não se mexia.


Fora uma árdua noite ao homem de estudos, que até então convencerá as almas da cidade ao progresso, fora uma horripilante noite à pequena neta, tremendo pelo pior. Mas teus calafrios haviam um pingo de razão, pois logo adormecera e o homem de estudos fez um apelo aos netos que agora acordavam: a velha não ficaria com seus netos mais apenas aos domingos, mas sempre que acabasse as encomendas. Em coro os pequenos, os médios e os grandes fizeram a velha ceder, e que o progresso entrasse em casa.


Máquinas, engrenagens, esteiras começavam a fazer parte do cenário da casa. Panetones, bolos, pães, roscas saíam das fornadas, trocou-se a lenha das caldeiras por óleo, e a casa enchia-se da mesma fumaça que pairava à cidade. Nunca a velha produziu tanto, mas nunca teve também tantas encomendas. As chaminés só aumentavam de número, e quanto mais a cidade crescia, mais chaminés apareciam. Apenas a pequena neta percebeu que foram ludibriados, mas ninguém a ouvia, pois as palavras de uma criança nada valiam à um adulto de razão.


Domingos e domingos se passavam, e a velha ficava mais atolada de encomendas, e mais distantes dos netos, e a fuligem de sua casa-fábrica agora consumia sua saúde. A velha enfim ficara de cama e nem o médico, nem o homem de estudos souberam o que fazer, mas a cidade tinha que continuar, e as encomendas chegavam sem parar, eis que o homem de estudos disse à velha que os netos continuariam seu trabalho para que entregasse as encomendas no tempo certo. Se o silêncio falasse, agora a velha já estava catatônica e nada além do som de uma pesada respiração de sua semi-aberta boca.

A pequena neta não podia mais, havia de fugir para algum outro lugar. Lugar nem fábrica, nem vilarejo, nem cidade, nem casa. Agora era órfã de lugar. Pegou uma pequena trouxa e a faca que a velha cortava os panetones, deu três beijos na testa velha encamada e partiu. Nem velha, nem netos, nem médico ou padeiro, nem costureira ou sapateiro perceberam a fuga da mais pequena de todas. Mas minucioso como era, o homem de estudos percebeu, e entranhou-se em um secreto desespero, daqueles que palavras não dão conta.


Correu esquinas, vielas, andares, escadas em vão, o homem de estudos deixou um fora de suas mãos, pressentia o perigo que corria, mas a pequena neta não. A pequena não sabia que seria procurada com obsessão tamanha, só conhecida por aqueles afeitos às corridas d'ouro. Nada de precioso carregava, nem talheres, nem cetim, nem passas, nem avelãs, apenas trapos e uma velha faca que estava a enferrujar. Seguiu as bordas do lodoso rio rumo a sua nascente, procurava águas mais puras, que quem sabe curasse a velha, era o que diziam alguns, ou que apenas queria fugir daquela cidade para nunca mais voltar, eram palavras de outros.

Ao certo, só a intuição de uma criança pode escolher um caminho qualquer, e o qualquer foi escolhido. Os olhos da pequena não foram marcados por intenção alguma, mas o coração seguia passos e passos para nenhum lugar em especial. O rio em seu lodo parecia estender-se ao infinito do horizonte, mas a pequena seguia adiante, eis que sem perceber o som acalenta seu corpo, e mais imperceptível ainda o céu finalmente escurecia. No limite do qualquer de seus atos, encontrou sem nunca saber a noite.


Acordara na montanha sob as vestes da cigana, uma palavra foi dita, mas não palavra de homens, a pequena não compreendeu. A cigana não proferiu mais nenhuma palavra dias a fio, levantou a faca da pequena e tacou-lhe numa das inúmeras fissuras da montanha. A pequena desesperou-se com tua última lembrança ser lançada ao fio do coração da terra, chorava em torno da ferida que não sabia mais se era sua ou se era da terra. Cavou com uma, com as duas mãos, cavou com os pés, e quando teus braços e tuas pernas fraquejaram, cavou com os dentes e o pescoço, mas por mais que cavasse, a faca já pertencia ao coração da terra.



Olhava agora pro céu, cinza e arrebatador, e rodopiava olhando o vale e a cidade, a luz se tornara do chão, e as cinzas, do céu. Estranha reversão das paisagens, a pequena poderia dizer o mundo endoideceu, mas já nada dizia, estava então sozinha, sem velha nem cigana, sem um alguém, sem ninguém. Mas havia algo de celeste que não havia de ser comentado, conchas e mais conchas brotavam ao chão, conchas marrons e conchas acizentadas por dia brotaram. Aí está, ouviu sussurar o vento, o aperto da velha doente lhe veio à memória e a lágrima não se conteve. Deslizou por seu nariz e caiu pelo chão, tão logo caiu uma, outras vieram em torrente, escorregando à fissura.

A terra sentia mais uma vez água em teu coração, e a água subiu, subiu e subiu, trazendo a faca à superfície mais uma vez, mas a faca já não era a mesma, reluzia como o sol que já não era mais visto, e enfim a pequena apunhou-a com suas duas finas mãos e as conchas começaram a vibrar, e vibrar, e vibrar. Num engatilho de explosões, cada concha liberava uma borboleta única, dezenas, centenas, milhares de únicas povoaram o céu ao redor da menina já não mais pequena, já não mais neta. Sua intuição de criança pedia um último ato, que coincidiria com seu ato último. A menina não titubeteou.


Levada pelas borboletas ao céu, empunho a faca às nuvens, e no centro de todas as cinzas apunhalou os céus. Um pequeno raio de sol pelo fio cortado passou, raio este que atravessou as brumas da cidade, o nevoeiro do vilarejo até chegar ao quarto da velha, restaurando-lhe a saúde. A menina caiu dos céus, e as nuvens se dissipavam e tanto o sol como a lua retornavam seu olhar ao povoado, as borboletas ficaram e dançaram sob sol e lua, mas menina não dançou mais. A cigana contorcia-se em risadas, o homem de estudos desbandava em desespero com tuas máquinas e mecanismos. A cidade e o vilarejo não eram mais um só, e a casa da velha não tinha mais chaminés que se estendiam ao horizonte.


Tudo voltara ao normal para alguns, mas jamais para a velha. A menina caiu dos céus para seu colo e deu-lhe um abraço, daqueles abraços que são sempre os últimos, e apenas quem o dá, sabe. Pálida, pronunciara uma única palavra, que tornara a velha, em avó.

Dizem que todos os anos, sempre na mesma época borboletas dançam sobre o ar para lembrar a netos, a avó, aos vilarejeiros e aos cidadões a menina que se foi.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Um brinde ao fracasso, gêmeo da invenção

Entre tantos rumos, desarrumos
Entre tantas colheitas, pestes
Entre tantas rochosas, intempéries

Que seria da flor sem o fracasso do musgo
Que seria das mãos sem o fracasso do quadrúpede
Que seria do fracasso sem o impossível

Entre tantos acertos desacertados
Entre tantos pensamentos impensados
Entre tantos sonhos insonháveis

Eis um grande fracasso ao impossível
um grande fracasso ao passível
e um solo renovado de novas tentativas