sábado, 23 de janeiro de 2010

Diagnósticos de uma vida contemporânea

O menino que é TDA/H...
A mulher que é obsessiva-compulsiva...
A vizinha neurótica...
O parente esquizofrênico...
Tudo é diagnóstico
Somos nosso próprio diagnóstico
Covardes até o túmulo
Buscai em palavras qualquer o sentido
E ria aquele diabo de asas negras
Rindo daquele covarde que da vida fugia
Entrava no mundo das palavras, dos grifos
E era soterrado pelas epígrafes
Raspava toda pele - criatura neurótica
E colava signos, nada mais que letras
Para que naquele lugar já nada sentisse
Somos covardes
Deserdamos pele, pêlos, tripas
Em troca dum punhado de papel
Não à toa que o diabo ri, que o animal ri,
Deus ri do medo do homem com tua obra
Este ser que tapa a cara para não ver
Odeia cheirar - e tudo que toca, toma cuidado
Vai que tira os jornais de teus ossos?
Como poderíamos viver?
Sem nosso diagnóstico cotidiano?
Pra saber quem somos precisamos de uma doença no espelho
Doença, eis nosso nome

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Vênulas, vênulas...

Que trazes agora ao meu coração?
veias, vênulas e demais
o que retornam a mim?
O que fazem com tubos venosos,
para se tornarem tão venenosos?
Que acontece que retorna dores e fantasmas
a um lugar que de tão pulsante que é
exorcisaria os demônios de meu espírito.
Mas o ressentimento que já trazem,
o medo que é carregado em teus fluidos
são ácido da alma que te suporta.
Somos por demais venosos
coração que já não suporta mais
tamanho peso
Precisamos ser mais arteriais
não trazer pra dentro
mas viver de fora
irrigando a existência com nosso sangue
é jorrando que se expressa
é absorvendo que se sufoca
vênulas, vênulas...
é tempo de vosso repouso

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Shuffle – um diálogo caóide de músicas

Por trás da presença de uma melodia, um outro mundo se abre para nós. A música, sua vibração, sua imagem, apesar de parecerem deglutidas pelo capitalismo, e assim apaziguadas na forma de mercadorias, para os nossos corpos não é assim.

Nossa carne é arrastada pelos ritornelos, essas repetições circulares que se esbarram, e assim como o rio desvia da pedra, a melodia toma outro rumo ao esbarrar com tamanhos “obstáculos”. A música pode ser desintegradora – podemos perder nossos eus música, nossos sentimentos, perdemos em breves instantes nossos rostos, caracterizados pela individualidade e pela historicidade.

Um timbre permite nos ver com outros olhos, uma música tribal leva nosso corpo à sua profundidade animal, uma música mecânica evoca o que há de não-humano, quem sabe o não-orgânico de nós. Os fluxos dessas imagens sonoras são perigosos. Ao mesmo tempo em que algumas forças compõem, outras estão intensificadas ao limites de nossa alma, deformando-a, rompendo-a em seus limites.

Dá-nos uma nova alma, a música tem esse poder. Ela nos afeta em nossa superfície, nossa derme e nossas vísceras. Afeta mesmo nossos corpos que não são opacos, pertencentes a universos incorporais. A música é poder. Um poder magnífico, divino. Como também necessariamente diabólico. Pois para uma pele ser tecida, a antiga precisa ser desfiada. Meu território deve passar por uma mudança.

Sendo levado pelos toques dos instrumentos e os gestos sonoros da cantora, meu rosto se desfaz – toda história nele contida, aquilo que me tornava indivisível desaparece. Já não estou no mundo empírico, no mundo das formas – alcancei um outro lugar, tão real, e ao mesmo tempo tão pouco compreensível. Acredito que este seja o mundo das forças, das singularidades que compõem as formas e o tempo, um tempo que não é tripartidário, pois o que há é momento em que as forças me levam, me tocam, me marcam.

Nesse momento, algo destituído de qualquer história e intenção se expressa. Uma força, um fluxo, um afeto. E esta expressão se bate com outras, e mais outras, criando um novo território para minha alma, um lugar em um outro tempo, um tempo que não é o da extensão, mas o tempo da intensão – as tenções internas das forças que constituem meu corpo. Espaço onde o invisível dança, e podemos apreciar os gestos desse desconhecido que vai tomando forma, que aos nossos novos olhos podemos percebê-lo. Sair do mesmo que age como um imperativo, o mesmo da organicidade para a diferença da multiplicidade que se organiza.

Uma entrega superficial à música pode ser feita. Mas algo que desliza sobre a superfície do mar causa movimentos torrenciais em suas profundezas. A música estoura clarões onde da escuridão que residimos buscamos persegui-la. De superficial então, só tem a palavra, pois a força da música quem sabe seja mais efetiva que o peso da moral. Em suas melodias, na escuridão do silêncio desponta uma nota, seguida de outra, compondo os mais diversos universos. É um dó, um ré. É um composto musical.
Seus efeitos vão da inação à mobilidade extrema em nosso corpo.

A música ressuscita almas que se perderam nas trevas de nossos corpos – novas forças (que podem ser ainda mais antigas que nós mesmos) despontam e entram no jogo. Mas poucas almas são suficientes para nós, algumas ainda precisam de uma longa estada nas profundezas do mundo para esperar seu momento. Não é qualquer outro que é suficiente, deve ser um outro vital, uma alma vital, em que tua força expanda os limites da vida para além da historicidade e da individualidade/organicidade.

Minha cabeça é percorrida por esses estrondosos clarões que a música produz, minha mente se perde, e em meu corpo o que é vital vai sendo despertado. As forças vão se expressando para que finalmente possam tomar uma forma, me romper da minha forma mesma. É um além, ao mesmo tempo que um aquém – um jogo barroco de luz e sombra – onde claro há mais sombra do que luz necessariamente. Algumas almas são sepultadas nesse mundo, vão para o campo dos possíveis, onde um dia possam retornar, mas apenas quando forem vitais. O que não é mais vital volta à escuridão.

Nesse momento, não há mais eu para ser, não há mais eu para carregar uma história ou mesmo um rosto. Há um corpo carregado pelas suas diversas almas, um corpo marcado pelas alegrias e tristezas, pelas extensões e intensões. Um corpo que não é representação de algo, mas é gestualizador da expressão, esse corpo não é um jogo de palavras em que chovem marcas que não marcam, cada marca desse corpo é profundamente instalada e o afeta enquanto durar. Esse corpo que vibra no mesmo estado da música, é um corpo intensivo, um corpo ardente de paixões e suas almas.

O dia permanece muito estreito, às portas da luz rodeia a escuridão, poucas são abertas, pois mesmo essas poucas quando escancaradas podem nos levar a pior das loucuras. A luz que atravessa meu corpo e desperta as almas mais arcaicas, mais abissais, me leva à desorganização, não sou capaz de conter suas forças, seu poder, e aquilo que poderia ser vital torna-se desagregário. Necessito de tais sombras do mundo para ser quem me tornei, preciso dessas asas negras de meu corpo que me transportam a escuridão que me constitui.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Insurreição da fantasia

Em sua caótica escrivaninha, lá residia sentado, de olhos pregados na tela de seu computador. O vaso de flores intacto como sempre, sem nenhuma alteração, pois as flores eram de plástico, o escritor não tinha tempo para cuidar de plantas, e muito menos de animais. Em sua infância era cercado de cachorros em sua vida na fazenda, mas o destino o levou às cidades, e não eram permitidos animais nos apartamentos. Acostumou-se rápido com a falta dos animais, pois tinha seu computador para servir-lhe de chupeta, e quando os canteiros de flores das ruas estavam sendo substituídos por postes de luz e anúncios comerciais, logo repetiu as palavras de seu pai, que as repetira de um cara qualquer que apareceu na televisão: é o progresso do homem!

Sentado, observava aquela flor artificial, quem sabe esperasse um movimento, ou mesmo acreditasse que aquela flor fosse falar com ele. Estava preocupado, estava entediado. Tinha um trabalho a fazer, mas não sabia por onde começar. Tinha que escrever. O motivo? Apenas tinha que escrever, assim como todo homem faz sua atividade, numa enorme inércia. A imaginação lhe escapava, como óleo que se esgueira pelas mãos. Uma idéia se esfarelava tão rapidamente que mal dava tempo dele digitá-la, mas os farelos de seu biscoito rodeavam seu chão, e cresciam a cada instante.

Escreveu sobre os avanços do mundo, sobre os computadores e sobre os aviões. Falou muito das conquistas do homem e do legado que deixa a seus filhos, e esgotado só queria saber de sua cama. Mas de tão cansado, dormiu lá, sentado e com a cabeça no teclado. Sonhava com a época da escola, quando uma vez foi campeão, de futebol de computador, e também namorava, pela internet e sem foto. Era bonito e não sabia, mas não tinha ninguém ao seu lado para notar sua graça. Seu pai, rígido demais para torcer um pouco o pescoço da televisão para as brincadeiras de seu filho. Sua mãe, ocupada demais com os afazeres da casa, esgotada desmaiava sob o colchão. Irmãos nunca teve, e os colegas o achavam um pouco estranho. Não era como os outros garotos, aficionados pelo esporte, e não se identificava-se com ninguém.

Sentiu uma pontadas no pé, levemente abriu os olhos, balançou os pés, voltou a dormir. Mas se for ver ele era um homem bem comum, tipicamente comum, quem sabe ,talvez, demasiadamente comum. A tudo o que lhe pediam, fazia de sorrisos abertos, e ressentido de coração, não sabia dizer não, mas também não sabia dizer sim. Balançava para cima e para baixo a cabeça, era o seu máximo de movimento. Era seu ápice. Era um homem de bastantes suspiros.

Seus escritos agradavam uma quantidade crescente de homens e mulheres. O que lhe agradava, e muito. Mas parecia que algumas peças sempre ficavam de lado, tudo o que ele fazia era transcrever as idéias de outro, existia um descompasso nele. Ninguém sabia lhe dizer o porque da estranheza e do vazio subjacente a seus escritos. Todos estavam fascinados com suas palavras, como encantados pela melodia da sereia, e o escritor estranhava. Talvez tenha notado, ou algo nele tenha notado, a estranheza de tamanha fascinação. A sereia seduzia os marinheiros e depois, silenciosamente, os devorava sob o mar. Seria ele como a sereia, um sedutor assassino?

Não. Era muito improvável que doces palavras causassem tanto mal. Nunca denegrira ninguém em sua vida. Era dotado de um humanismo além da conta, e quem sabe não era isso que a todos atraía, encantava e fascinava? Contar as peripécias humanas, as aventuras dessa raça que tentava dominar a natureza e seus corpos? Agradava a todos, reconfortava a todos de seu niilismo diário, pois através de sua escrita cerrava os olhos de cada um, cada um a seu tempo.

Mal percebia que seu pé estava coçando de novo, cansado com estava, não deu bola. Mal sabia ele o que acontecia sob seus pés, ou mesmo nas redondezas de seu quarto. Ouviu uns cochichos, e não deu bola, era mais um entre tantos zumbidos que rodeavam sua cabeça, como se ele fosse o sol e os problemas, seus planetas, e que tal zumbido não passasse de mais poeira que circundava a vizinhança.

Horas se decorriam, caiam feito areia em relógio, e o escritor roncava, inconsciente de tudo aquilo que se passava, não percebia a agitação em seu quarto, e que estava prestes a chocá-lo. Ouviu o alarme de seu celular tocar na cozinha, sonolento ainda, de olhos cerrados, em sua postura forte e cambaleante, levanta-se, desliga o computador, e se vira para a porta. Tão desatento à sua casa que se desconfigurava e de seus outros integrantes, tomba no tapete de veludo pela armadilha que lhe foi implantada. Estupefato, resmunga algo inaudível e tenta se levantar. Não consegue. Faz mais força que a primeira vez. Sequer moveu um dedo. Em sua terceira tentativa deposita todas as suas forças, e nunca sentiu seu corpo tão aderido ao solo.

Seus olhos, ainda nublados pelos sonhos que tivera, via pequenas pernas se movimentando ao chão, e ele, confuso, já não entendia mais nada. Achou que ficara louco, e talvez o tenha ficado. O que via, com toda a certeza, não podia ser a obra de alguma razão. Seus olhos, agora apavorizados, fitavam a multidão que o rodeava. Não eram homens. Nem o maior deles tinha sequer uma semelhança. Eram tão pequenos, que o escritor em seus afazeres de gigante, jamais os havia notado. Alguns carnavalescos, outros monocromáticos. Podia se dizer que eram tudo. Exceto que eram humanos.

Chegou a seu nariz uma criaturinha, miúda como botão de algodão, que começou a falar com voz de trovão. Seus sons, inentendíveis para o escritor, ressoavam pelo quarto, e ecoavam em seus ouvidos. Não sabia do que se tratava, mas ficava com o peito apertado. Chorava o escritor. E como chorava. Virara um chafariz de lágrimas. Como se as palavras daquele miúdo ser, inentendíveis como eram, o tivesse afetado em suas mais profundas feridas.

Tua carne tão agregada a tua ossatura desprende-se da casa e de suas extensões. Músculos e pele escorrem pelos ossos de sua mão, órgãos são lançados ao vazio, as tripas ao teto. O escritor já não tinha mais o suporte que sempre acreditara ter, a sensação já não passava por ele. Teus ossos, tua carne, e a multidão. Três elementos no pequeno universo de um apartamento.

Teus olhos derreteram, sua vista tornou-se difusa, turva - desapareceu. Um nada do que restou. Nada. Nada passava pelo escritor. Um vazio percorre teus ossos sem carne, sem pele. Chegou a seu nível mais opaco do corpo, onde nem a luz, nem os trovões dos estranhos seres perfuraram. Ossatura imóvel, que nada mais é que um suporte. O que de homem o escritor tinha, de carne sem vida e pútrida de uma abstração, foi devorado pelos estranhos. A si já não restava mais. Nada de si, nada de idêntico – ou não – a si.

A multidão, ainda não saciada, busca o tutano dos ossos. Aquilo de mais vital ao suporte é teu alimento. Começa-se o lento trabalho de tirar as lascas do osso em busca da vitalidade. Quem dera o escritor ainda tivesse carne para movimentar tua boca, mas lhe restava apenas a passividade. Não era capaz de gritar, pois não agia, e não possuía modo de reagir. Restava-lhe a dor de teu apoio se desmoronar sem nada poder ser feito. Homem que se tornou irreversivelmente desumano. Estilhaçado, esfacelado, o escritor já nada podia.

Sua obsessão em enveredar no vazio de tuas idéias cessara – nada restara além das marcas do combate com tamanhos seres. O tempo deixara de existir para o escritor. Não há velhice sem carne, não há tempo que não se encarne. Desumanamente marcado, habita o vazio do nada. Tuas marcas humano-tóxicas abandonaram-no junto com a carne que se desfez de teus ossos, as pregas de tua vergonha foram lavadas pelo esquecimento. A estranha multidão era torrencial, penetrou aonde o escritor era mais opaco e o transportou para aquém de si. Esgotara-o de si.

Mas não bastou esse ritual antropofágico dos ministros dos reinos abissais e feéricos, não bastou consumir tua carne, nem mesmo teus ossos. Teus reinos não dispunham em obliterar o homem, mas de corrompê-lo, teus planos iam além desta criatura chamada homem. Em teus restos talharam novas marcas, em teus sulcos novos ovos foram postos. Ovos dotados de um estranho efeito – constituíam um tempo mutante que não era nem lento, nem vertiginoso, nem claro, nem escuro. Uma outra temporalidade.

O que havia de escalar no tempo do escritor foi jogado ao espaço – teu tempo tornou-se uma intensidade atraída por tuas novas marcas. E tuas marcas atraiam novos tempos, novas carnes. Duas partes do ritual já haviam passado, a consumação e o entalhamento, restava uma terceira etapa. Tuas marcas ressoavam no campo, algo que não é da ordem de ser visto ressoava em concordância com as novas marcas. Um mundo invisível tece uma rede com os entalhos da ossatura.

Do apartamento e suas extensões plasma-se uma outra carne, que rasteja em direção aos restos do escritor. E a multidão segue o espetáculo. Mas mesmo esses ministréis de outros cantos estavam despreparados para com o que vinha a seguir. A carne atravessou a sala como uma enchente, turbilhonando tudo que havia no caminho, muitos foram levados ao pânico, mas poucos foram os tragados pela maré carnosa. Os poucos engolidos imergiram em profundezas de músculos, tripas e nervos. E quando a carne finalmente desceu até os ossos e agarrou as marcas que a atraiam, uma fina camada de pele começou a se formar nos contornos da massa.

Teus limites, tua clausura. Escritor, carne e os estranhos seres. Todos num só corpo. Irremediavelmente, irreversivelmente corrompidos. O homem já não era homem. O desumano, desumano. Um híbrido dos reinos humano e desumano, que pode levar ambos ao colapso como tais.

Quem sabe esta fora a última alternativa dos habitantes da fantasia antes que seu mundo fosse destronado da existência. Sua insurreição final, corrompendo as essências para manterem-se vivos no mundo das intensidades. Ou quem sabe, caóticos como são, apenas queriam experimentar outros devires?