segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Quebrando o gelo

-As estrelas estão mortas, disse o profeta

-As estrelas estão mortas, repetiram os fiéis

Fez-se o desespero, o juízo final havia chegado aos fiéis

Então fez-se o silêncio das preces angustiadas, a desesperança ergueu-se

Porém um homem levantou na multidão

-Como podemos dizer que as estrelas morreram se o céu está apenas nublado?

E o profeta torna-se imponente ao homem, acudido pela multidão

-E o que tu sabes da vida? És apenas um tolo, não tens fé?

Humildemente, o olhar do tolo encontra-se com o do profeta e lhe diz

-Tenho fé sim, meu senhor. Sei de todas suas predições e de sua veracidade, mas minha fé não está em sua palavra, mas a meu guia. Palavras vêm e vão, causam impacto na gente, mas não condizem com a realidade. É tua a prepotência de que tuas palavras irão matar as estrelas.

Dito isso fez-se outro silêncio, um silêncio desconfortável, e aos poucos ouviu-se murmúrios que logo tornaram-se grandes vaias da multidão, o rebanho de cordeiros estava exposto e agitado, guiado pelo pastor profeta.

-Tu não passas de um tolo sem fé! Abandona aqui sua descrença ou se vá!

Dito isso, o profeta encarou colérico o homem tolo esperando que ele se curvasse, mas para a surpresa de todos, o homem tolo apenas virou-se de costas e partiu.

O homem tolo apenas disse uma palavra para o rebanho e seu pastor: Caminhe

________

Tolo é todo aquele que não segue a crença do senso comum sem questionar, tolo é aquele que não segue o rebanho, tolo é aquele que não funciona racionalmente.

Sejamos então tolos, mas não no sentido de ignorantes e de sempre estar contra, e sim no sentido dos taoístas. Que não permitamos cristalizar crenças de como o mundo é ou criar muralhas de conhecimento em torno de nós. O mundo muda, você muda, os outros mudam, a única constância no universo pelo que parece é a própria mudança. Logo viver num sistemas de crenças não nos prepara para a vida, pois as crenças são tecnologias do modo racional de agir, elas são pontuais, elas são especialistas, ela não permitem nem ver nem sentir a integridade do mundo, apenas um esquema dele. A razão é utilíssima à vida, enquanto serva dela, mas quando a razão torna-se a senhora, torna a vida um ato funcional e perde-se todo o encanto, toda a poesia nela. A razão por si só é limitante, e muitas vezes na vida, não há tempo pra racionalizar os fatos, e temos um outro modo de agir, um modo irracional, mais voltado ao sentimento e a unidade perceptiva, as respostas são mais imediatas e globais, não perde tempo com o processo por etapas, é uma resposta intuitiva, mas que muitas vezes é desconsiderada por não fazer sentido em nossa sociedade de máquinas, racional, onde até os afetos estão tecnologizados.

Apenas porque nós fomos condicionados a colocar um iceberg em nossa intuição não quer dizer que estamos fadados a viver com esse bloqueio em nossas vidas, mudemos isso, nos tornemos numa metamorfose ambulante, sempre renovando nossos valores até o dia que a vida acontecerá por si só, não necessitando de nossos racionalismos para se dirigir. Livre por si só.

Basta fazer como o tolo faz, caminhe.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

De passagem

Sou como um andarilho
vago pela imensidão desse mundo
ao descaso e com passos cambaleantes
procurando encontrar, mas sempre desencontrando
sendo ao mesmo tempo a encarnação e o avesso
coabitando verdade e mentira num mesmo corpo
percorrendo as estradas dessa vida,
por mais incertas e tumultuosas que sejam,
e sempre ao lado de seus companheiros de viagem,
mas nesses tempos meus amigos já não caminham a meu lado
as estradas se bifurcaram, e os detalhes que cada um vê são outros
não se perdem de vista, mas jamais conhecerão as peculiaridades da trilha de seu amigo
há sendas que só cabe a ti percorrer
por mais solitário que possa parecer
mas como as flores da primavera que desabrocharam, a vida continua
segue as estações, o tempo e o além
e ficamos fadados a esse mundo inconstante, mutante
carregamos este fardo do caminho incerto
viver num mundo onde os vínculos mais profundos não passam de perenes lembranças
pois tudo está assim, de passagem

sábado, 20 de setembro de 2008

Desencontros com o desejo

De longe vejo um sutil vulto,
um fantasma, um espectro, e tal é seu poder
que me adula a seu encontro
mas jamais é permitido nosso toque devido sua natureza
é algo que arrasa suas entranhas,
motivo de guerras e revoltas,
e, ao mesmo tempo, motor da paixão
somos entregues a essa busca, esse vil espectro
vil e brincalhão, gracioso como um silfo
movimenta-se a maré dos ventos
e sempre cada vez mais longe
mas meu corpo, denso corpo, não acompanha
não consegue ir além, é um esforço enorme só andar
e o silfo desliza sobre a brisa de primavera.

Ah caro amigo, por que essa esquivez?
não vês que não quero lhe fazer mal?
ou justamente é esse seu objetivo, fugir de mim
fazer com que eu caminhe pelo mundo,
vague pelas ruas afora como um lobo solitário
apenas para...caminhar
sentir as fronteiras que dividem florestas e desertos,
os confins da terra e a profundidade do oceano
e ir além dos céus, encontrar as estrelas
e me deleitar a seus supérfluos.

Escapar dessa redoma a que chamo de mundo
rasgar esse pano estrelado que chamo de limites
abandonar o espírito da gravidade em mim,
ou melhor, libertá-lo de mim
e tornar as coisas livres de mim
até você meu silfo, desejo que seja livre de mim
e brinque entre as nuvens conforme tua vontade,
caminhemos juntos enquanto formos livres

grato à tua presença

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Lua cheia

Hoje é noite de lua cheia, algo percorre minhas veias mas não sei o que é
vejo meu corpo e ele está em guerra, tornou-se um campo de batalha
mas batalha? batalha de que? lutar contra o que? quem?
e o vazio assola mais uma vez, minhas resistências perdem o sentido
e uma pradaria deserta surge do conflito
das mais belas arquiteturas, dos mais vistosos ornamentos
restaram-se as ruínas, quebrou-se tudo que era certo
a vida caminha e eu fico em seus escombros...

Mas a vida é engraçada, ela é sarcástica consigo mesma
constrói sua torre de cristal e logo em seguida a faz desmoronar
e com os restos começa a brincar, volta a ser criança
pega os escombros de suas antigas criações e junta com as novas
monta, remonta e desmonta, mas sempre diferente
as peças são as mesmas, mas a arteira, ah essa vida
sempre dá um jeito de fazer diferente

Como fascina essa indissolúvel companheira
essa artifície da realidade, muda a si e a todos
para onde ela vai o encanto vai atrás
assim como a maré persegue a lua
e os astros dançam entre si

E fora essa mutante, nada me resta
pois todo o resto, nada mais supérfluo
é mel que escorre dos céus, pela lua dourada