sábado, 26 de setembro de 2009

Nem lá nem cá

O primeiro grito

Autoriza!

Segue-se o segundo

Libera!

E um sugestivo terceiro...
Desaba


Três gritos que ecoam na mente de um homem,
variadas são as intensidades
e seus modos de afetação

O primeiro ato é estridente, gago
é algo que começa a tomar forma
dobrar-se e enclausurar-se

Primeiros marcos de sua formação
movimentação trôpega
a passos de hipopótamo
é a brutidão contra o corpo

Após tantas traves colocadas
o homem solta seu segundo grito
já não aguenta viver docilizado

Reage rumo animalidade
mas apenas racionalmente animal
o homem diz não ao não

Indícios de uma resistência
armada até os dentes
quebrando suas origens
em troca da liberação

Faz-se um vazio
o corpo esteve contra ele mesmo
e o incômodo surge

Entre o nada de conduta
e a disciplina do rebanho
resta um corpo em conflito

Sugestivo terceiro grito
não lá da platéia que se houve
pois não é de palavras que ele é feito
é corpo do artista que age

Em sua exaustão
o corpo desaba
e percebe o chão

Rasteja pela horizontalidade
e percebe-se num novo paradigma
não quer mais os céus ou o inferno

Outras direções surgem,
outras possibilidades,
além da disciplina e da liberação
na criação inerente do desaba.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Artivismo político

Uma voz na multidão, silencioso grito de uma carne endurecida, batida e amaciada. Escalandosamente cai o portador da voz, contorce-se no chão, e a multidão se aparta do gado repartido.
O rebanho auspiciosamente observa aquele estranho em ninho, ovelha desgarrada, machucada. Abre-se lentamente o círculo da exclusão-inclusão, o circo se apodera do espírito da multidão.

Sob os holofotes do picadeiro o acidentado sobre o asfalto batido que sufoca a terra e os pequenos grãos quer se chamem gramíneas quer se chamem crianças quando crescem é pela marginalidade e ressequidas pela aspereza e sujas pelos constantes atropelamentos desses carros chamados educação e política sem nos referir a beleza assassina dos bons costumes e da tradição que a cada dia ceifa prematuramente qualquer vigor ou lampejo de vitalidade que se faça dentro dos tribunais públicos da vida cotidiana onde se encontra o pilar da sociedade e seu porteiro das pequenas maldades enquanto não chega o vizinho para denunciar sob a porta do 601 que aquele grito que pertubou o asseptizante sono de beleza plástica da alquimista ao contrário era a criatura abominável que vive e cresce às várzeas das ruas da cidade destronada onde a lei se faz cinza e a pastelização é o imperativo categórico moral do bom cidadão que atrela-se aos graciosos bons costumes das marias que não são flores e nem graça possuem mas que vivem como vampiras seguindo as ordens da velha moradora atormentada pela visão cósmica de deuses faz a todos temerem suposto fim de mundo sem saber que tal fim pode ser a recuperação de uma vida que já não se faz mais pela pele ou suas entranhas recheada de medos e supertições tentaculares que sufocam residente a residente extorquindo todo hálito possível que haja num coração que ainda insista em pulsar e a resistência esvanece pois não há homem ou mulher que queira fugir das peles de lobo e suas lareiras intoxicantes cerceando a cama de fuligem em seu pequeno quarto sem janelas ou amor pois mais fácil é descer pelo elevador cego para o além de narciso e entrar em seu carro para amaciar ainda mais o asfalto e atropelar os vermes que ainda insistem em se mexer mas que nunca saem do condomínio até que esses vermes entranham e o inexperiente médico do 104 incapaz mas repleto de glórias e honrarias prescreve remédios que matam esses invasores a custa de um câncer que percorre lentamente e se pulveriza pelas tubulações de cromo enferrujado do esqueleto de vidraçaria estilhaçando com o peso de tantos moradores e ratos adjunto simbióticos a cada indivíduo de bafo de ressaca pela vitória de ter matado as crianças do mundo e substituído por galões de álcool enquanto dormiam sob seus leitos crendo protegidas na casa de seu mais furioso algoz na panoptia familiar restrita a danones desenhos e conexões com os metafísicos mundos cibernéticos do qual enfeitiçadas adultilizam-se à idade de de três a quatro anos porém mais jovens ficando velharacas de museu.

Levantou-se ovelha desgarrada sem respirar, deu com os ombros pra multidão, e partiu enquanto àqueles que restavam nada mais diziam além de:
A culpa é da poluição

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Manifesto da linguagem

Chega!

Basta!

Já não se aguenta mais!

É pau, é pedra, é fim de caminho, diria a música

E eu digo: é hora de pegar paus e pedras
Já é hora de deixar de ser ingênuo
Já é hora de revoltar-se com a casa
e hora de explorar novamente a mata

Se há uma pedra no caminho
Se há uma estátua no caminho
Se há uma catedral no caminho
Quem disse que acaba aí o caminho?

Basta!

Basta de sossego!

As palavras estão muito duras, os poetas: mortos

Enquanto isso os tablóides de jornal reduzem o mundo a 26 letras

Troca-se vida por informação
Monta-se o palco, encena-se o massacre e o assassinato

E a platéia, indignada com a situação
Explode-se em catarse de lágrimas
Não resiste a se amortecer com o espetáculo

Olhares vidrados, extinguidos de vida
Ouve-se um grito, um grito entranhal

É a puta que solta seu último suspiro diante do cafetão
É o pai ajoelhado diante da arma que sua filha carrega
É o menino do tráfico acovardado pela polícia-guerrilha
Por um momento, a platéia se choca

Mas apenas um momento,
Pois vira-se a página
E seus olhos secos se direcionam aos cadernos de cultura

Olhos se cruzam com linhas
letras, palavras e frases
mas do mesmo jeito vertiginoso que passa olhar
não se deixa tocar pelo que é escrito

A linguagem corre sério risco
ela já não nos afeta mais

nossa cabeças estão obesas demais para ler
nossos corpos - raquíticos demais para sentir

as catarses que nos assaltam, nos atropelam
mais são deveres culturais do que um corpo que chora
não é um corpo em devir, mas um sentimento em estamento
diante de nosso imaginário, de nossas fantasias sociais
utopias e distopias de um novo mundo

Basta!
É hora de pegar os paus e pedras!
Pegar essa pedra, essa estátua, essa catedral no meio do caminho
e estilhaçar sem nenhum remorso
Quem sabe assim, movendo os músculos, nossos corpos não sintam mais?
Que cada palavra seja obliterada
que denuncie as mazelas daquilo que chamamos
BEM, AMOR, CIÚME, MAL, ÓDIO, VIDA, DEUS
Chega de abstrações!
CHEGA!

Cansei, dessas palavras que a gente usa inconsistentemente
Cansei dessa nossa mania de perverter as palavras
de torná-las nossos deuses e deusas
Cansei das letras que se aglutinam e se dizem de vanguarda
cheias de significados e sentidos, permeadas de metalinguagem

Se a vida não se justifica, porque a linguagem o tem que fazer?
Repugnável poder que o homem dá a palavra da metalinguagem
em troca da submissão da vida à sua ordem gramatical

A linguagem deve desertar-se de seu significado
para viver ela deve rejeitar toda pretensão a uma ordem
tornar-se uma estrangeira em seu ninho

Sair das amarras da abstração
Afirmar sua comunicatibilidade com a vida

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Conexões corporais

Que tecido é esse? Que corpo é esse? Que pele é essa?
Derme sensível, tocada por forças que nossos olhos, blindados como estão, não conseguem ver.
Forças que amassam a pele, dobram o corpo em alguns pontos à medida que torna plano outras dobras.
Lugares são intensificados e outros são desinvestidos.
Que corpos são esses? Corpos não necessariamente orgânicos, funcionais, talvez, quem sabe, um corpo sem órgãos também caiba aqui. Corpos teciduais, feitos de retalhos, e dobrados, redobrados em uma finitude de componentes, mas numa variabilidade de combinações quase ilimitada.
Não é um corpo que busca o ilimitado, não é corpo desejante em se constituir conforme o Modelo, o Homem, ou mesmo Deus, não é um corpo que queira necessariamente chegar a um ponto fixo, e construir sua casa de palha nas dunas de areia da existência.
As torres de outrora desmoronam, desfalecem, esmaecem tijolo a tijolo, erodidos pelas areias do tempo e do campo. Quem saiba ainda restem Eus empapagaiados, em seus poleiros dentro de suas gaiolas, admirando sua biblioteca magistral, os tapetes de animais empalhados, tapetes defuntos, uma lareira queimando lenha e soltando uma fuligem negra, asfixiante e que recobre o ambiente como uma névoa venenosa.
Lá está esse grande Eu em toda sua glória, feito um papagaio em seu poleiro, prisioneiro de uma gaiola que ele mesmo criou, ele se tornou seu próprio algoz. Não deixa de falar de seu projeto para a humanidade, porém jamais em contato com ela, conta verdades que só o são em sua psicose diária da exclusão, exclusão de tudo que difere de sua opinião. É refém de sua própria conduta, é esse homem velho, cada vez mais jovem nas aparências, que transformou seus valores em suas grades, num ímpeto de reafirmar uma identidade moral já perdida.
Não que não haja moral nos tempos agora pós-modernos, mas a dinâmica dela mudou. Não é mais uma moral individual que foi dada a Deus para alguns espalharem, serem seus profetas, seus sacerdotes, transformando todos aqueles que não são tocados por Deus em infiéis, ou no melhor dos casos, existe a conversão religiosa em seu tenebroso sentido: transformar homens em cordeiros de Deus.
Hoje a moral está mais para um fluxo do que um estamento. Não é mais um relâmpago que desce dos céus e queima, devora a terra, mas é um como o leito de um rio, que alarga e afina diante das rochas da existência, rochas das mais variadas texturas: duras e vulcânicas, dispersas e arenosas, rochas mutantes e metamórficas. Nosso corpo faz o rio, nosso corpo afeta e é afetado pelas rochas, em certo ponto somos a rocha. Nossa moral hoje é corporal, é das mãos que fazem, das mãos que curam, é a moral da célula, individual em sua dinâmica sobrevivencialista, mas quando em relação intercelular produz as mais belas formas de vida: de gramas rasteiras a imponentes orvalhos ou delicadas cerejeiras, de baratas, ratos e lesmas a um bem-te-vi, um falcão, um cisne, de gambás a lobos, cães, leões. Da célula ao animal, da célula ao homem.
A célula é finita, tem sua vida datada, e assim que as areias de seu tempo deixarem de cair, ela entra em processo de desintegração, libera de seu ser seus elementos constituintes, que podem vir a ser usados por outras células finitas, que se combinam em profusão de linhas e vertentes, formam tecidos e órgãos, e tecidos e órgãos formam corpos, e corpos em conjunto se combinam mais uma vem: criam o socius, criam a moral, criam o amor.
Cria-se o amor, e com amor se cria. Um amor que não é feito de transcendentais, um amor que em conjugação com corpos que a cada instante não são mais os mesmos, combina-se, cria uma dobra aqui, e acolá estendemos esse tecido corporal. É claro que o amor não é algo fácil, o amor incomoda, e muito.
Não é como as coerções sociais, médicas ou políticas que permeiam nosso caldo de cultura e que não damos tanto importância, e por isso não nos incomodam tanto, nos blindamos desses diagramas, eliminando aos poucos, ou melhor, recalcando, levando para o inconsciente tudo aquilo que não reluz para nós.
Aceitamos fácil que a cultura deva ser de tal jeito, que a sociedade sempre tem e deve ter seus excluídos, que a política é algo feito de cima pra baixo, ao invés de ser horizontal, com a ativação de nossa voz política e retomarmos nossa capacidade de fazer para nós, e não para uma entidade quase divina como o governo. E discutir se o que o médico receita faz bem ou mal, se ele nos trata de forma digna? Pra que isso!
Mas em nossos tempos, quando se fala de amor é difícil não ser afetado. Ou se é apaixonado por ele, ou emite um profundo ódio quando se toca nele. A indiferença existe, em corpos que já não sentem, mas são poucos que trocaram sua pele por uma fina camada de metal, asséptica, lisa, insensível, imagética, ainda são poucos corpos que perderam suas vísceras para adquirir o status virtual da imagem.
O amor quando em profusão toca corpos, libera resistências e as cisões Eu - Outro vão adquirindo um espaço, quem sabe um não-lugar, onde a distinção já não é possível, um ponto onde já não sei mais quem sou, quem você é, um ponto de urgência, um ponto que realiza transformações sutis ou brutais.
Também pelas péssimas experiências amorosas, fazemos de nossa pele uma armadura, vivemos em estado de guerra, alertas ao menor sinal, rigidificamos o ser, e as dobras se tornam nós explosivos, que ao menor toque liberam uma energia difusa, agressiva e dominadora, que machuca a quem toca, a quem está perto, e a si mesmo.
É difícil desapegar-se dessa densa armadura, a erguemos para nos manter estáveis, parados, petrificados no tempo, mas quando a mão do outro chega, com boas ou más intenções, nos desestabiliza, nos retoma ao fluxo do tempo, e nos obriga a sair, mesmo que seja apenas por um instante, da floresta petrificada em que convivemos.
O outro nos toca, tocamos o outro. É uma conexão em que nos misturamos, é a comunicatibilidade dos corpos que não passa necessariamente pela linguagem, nas línguas mais atuais, é um plugar-se em rede, rede de corpos, rede de seres, rede de vidas.
Redes de amor.