sexta-feira, 9 de março de 2012

Pequenas estrelas

Como aprender senão por um lento e vagaroso movimento? O que nos torna sensíveis aos signos do aprendizado? A impronunciável paixão, a inexorável ambição? São os afetos que provocam o sensível, que não deixam de convocar esta pele a uma nova minúcia, a um outro pequeno dobrado em sua superfície. Dobras, aprender jamais foi aprimorar, acumular conhecimento, dobras. Aprender, que seria de sua ordem senão aquilo que nos dobra em outras direções, e ao estar em outras direções, é nosso pensamento que passa a vaguear por brumas, abismos, névoas, céus. Mesmo as estrelas são a dobra de um aprendizado. E ao movimento das estrelas acompanha nossa pele... afinal, ela é tecida de cosmos. São estrelas, em especial as que dançam, que nos provocam a orbitar, e a sair desta orbita por outras paisagens. Mesmo as antigas retornam a nossa pele, dobras. É de estrelas que somos feitos, explosões e intensas formigações, refrações e silenciamentos. É, as estrelas piscam, e o piscar grita.. aquilo que já havia lugar em nós pisca, e sai aos poucos de nossa órbita, e como que por força de gravidade, nos desorganiza em pedaços, pequenos asteróides que cansaram de ser planetas. O piscar é um convite, dizem. Um convite a habitá-lo, a habitar o piscar, a habitar a estrela que dança e pisca. Um convite a habitar o vagaroso ensinamento das dobras e das desórbitas.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Correm depressa os ponteiros...

E se a cada segundo, e se a cada instante eu lhe curvasse, se eu lhe idolatrasse, que haveria de mim ainda? Fui me criando em ausências de senhores e de ídolos, não lhe posso oferecer minha submissão. Você me vem com o relógio e acelera os ponteiros, mas a noite segue insone, cristalina. Por mais que haja de correr, não poderia permanecer como um rato que corre em sua gaiola, dando voltas e mais voltas sem o saber. Não, e também não é que você me cause insônia, mas a insônia vem se tornando uma parte de mim, é na insonia que não te encontro, enfim um respiro... cada segundo percorrido vem sendo uma enorme parede de argila me comprimindo, e neste sonho sem sono contorno o colosso, como se a argila já se transmutasse para um outro material, algum que eu possa moldar e assim construir um outro tempo para mim, que o encontre, mas que o tempo seja meu jogo, e não meu fim...

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Hábitos de um espírito geológico

Faz da terra meu labirinto, minha contração, minha expiração. Sabia de tuas sabedorias e de tuas artimanhas. O desejo quis se firmar naquele lodo existencial, lá onde água, terra e luz se encontravam, lá onde a chama cintilava em labaredas, e crispava em melodias, acenos de um caminho cuja volta não conheciamos, e passamos a preferir não. Já não precisávamos conhecer, seguiamos, seguiamos até nos perder de nosso guia, e precisariamos caminhar logo cedo se não fosse nossa bússola encarnada insistindo em oferecer uma meta, e a insistência daquele ponteiro mergulhava naquele território, naquele país que parecia um conto de fadas, um daqueles contos nos quais nos encontramos a cada esquina, um abismo. Seja o fundo do poço, seja a boca da bruxa. Os olhos da harpia. O canto da sereia. O canto, o abismo mais profundo que pude me ater, sem o perceber logo estava me debatendo no fundo que aqueles timbres teciam, preso em uma teia de aranha de fios musicados. Enfim, o abismo me fazia deslizar, o mergulho naquela fantasia contraída havia se tornada meu hábito, tal como me tornei o hábito da terra, o hábito da matéria. Fabular, a terra fabulava, e eu, em minha breve condição de fabulação terrena podia apenas afirmar meu sopro, minha mineralidade naquele pequeno espaço que habitava. Precisava estar bem comprimido, bem junto cada parte, para assim não esgarçar. Cada fabulação da terra era a volta da guerra de Netuno, seus mares e suas tempestades inundando continentes, naufragando montanhas e nos empurrando direto ao abismo. Me disse calma, e deu o último suspiro. Só mais um de nós estava seguindo sua bússola, e era eu aquele incapaz de fazer um caminho qualquer, aquele caminho intuitivo que a fantasia faz criar nas cabeças vazias o suficientes, eu era, e quem sabe ainda seja um devorador de homens e suas humanidades, quem sabe por isso a dificuldade. Agia frente a bússola que pendia, tal como os homens e suas metas, mas já não era humano, já não era animal ou mesmo orgânico. Era um sopro mineral nas teias da sereia, naquele canto aracnídeo em que percebi que minha imobilidade se tratava não de seguir guias, setas, agulhas ou outros homens, mas de ser tão ingênuo de achar que de humanidades que me movimento. A sereia me convocou ao abismo do canto não por uma punição, mas para evocar o excesso do real em sua fantasia, para evocar os cosmos que me faziam a fabulação e o hábito da terra. Me convocou a devorar o abismo, a contrair o abismo. E contraído o abismo uma insensata sensibilidade fazia-me cristalino. Era o que era, um sonho contraído de terra, água, fogo e ar.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

O bebê e as línguas

Indiferenciado e impessoal, o bebê teria mais a dizer à nós do que suportamos, adultos que somos, especializados que somos, sofremos de nossa própria designação.

Já dizia um fílosofo querido: o bebê é pura potência, está continuamente experimentado a si e ao mundo, ele está muito além deste núcleo duro da subjetividade ao qual nos encontramos encurralados - o eu.

É uma centelha, uma vibração, isto é, uma vida, diria este que é Deleuze.Atravessando aquilo que é mais empírico, mais orgânico, mais pessoal, eis uma vida, uma força que embaralha nossos códigos já enrijecidos.

E ao mesmo tempo, como o é frágil aos nossos olhos bem sabidos toda esta suspensão de juízo que o bebê efetua e que lhe permite um nível de experimentação ao qual nossos hábitos nos demandam a fuga.

O bebê fala por todos os cantos, e nem a fralda, nem a chupeta ou o seio o calam, ele não faz o jogo da falta e da necessidade, ele é uma bomba de desejos.

Explosão intensiva, empiricamente invisível. Nós em nosso voluntário endurecimento, já não o vemos e confundimos esta fragilidade, esta suspensão, esta potência que o bebê carrega com uma fraqueza, e justamente este caldeirão desejante que arrebenta todos os paralelepípedos em que encontramos esta uma vida.

Fizemos do ato uma necessidade, e desde então aquilo que chamamos de liberdade não passa de uma palavra, pois toda nossa potência foi convertida no ato, e sofremos desta determinação da potência, desta determinação que nos designa um eu, uma pessoalidade, uma especialização - afinal, isto que nos insere no mundo adulto e nos fecha a possibilidade de mundos outros.

E o bebê, impessoal e indiferenciado, é esta presença que arrebenta as paredes do mundo adulto, é uma língua, que para além das gramáticas, faz das sensações um mundo outro possível.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Roubaram-lhe os cabelos

Agora curtos, grossos, porém suaves
a longa cabeleira ficava na saudade
aquela pequena canção em carne
da vida, uma música
uma vida sem história
uma vida existente
seu si era o mundo
não um olhar para trás, mas um adiante
sem história, cheia de marcas
cheia de desvios, cheia de lágrimas
o canto era sua alegria
alegria invisível à nós que já não a vemos
agora ela é de outra qualidade, não mais é carne
é um sopro, que vem nos animar
uma brisa cantante
desafiando nossa insuportável densidade
ah pequena! bon voyage

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Na fenda a vida crescia

Existências se fazem debaixo da ponte
se fazem em cima e aos lados
todos os poros, todos buracos
habitados por aqueles que esquecemos
habitados por aqueles invisíveis
cada fissura, uma história pulsa
um ritmo que não o nosso
mas pulsam, eles e nós
e nas batidas desregradas
um esboço de canção
um encontro, um estar só
para além dos ossos,
para além daquilo que lateja,
um timbre, uma voz
enfim, um sorriso


para os pessimistas, olhem! Há vida!
para os otimistas, olhem! Há trabalho!
há alegrias, mas também muitas tristezas
lágrimas por vidas que não mais
lembranças por vidas que não mais
e nesse momento, há que se convocar
os guardiões das memórias presentes

nem memórias pregressas ou póstumas
e sim memorias presentes
a memória do instante
lembrar a vida no instante
e não apenas seu
NÃO MAIS...

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

O papeleiro

Sua boca, um deserto. Há tempos que não dragava uma gota sequer de água, mal lembrava da última vez que choveu, última vez que a viu, última vez que riu. Seguia às ruas, procurando sustento e bisbilhotando vidas que se faziam às esquinas. A proposta de casamento, o assalto, o mijo do cão no poste, pequenos acontecimentos que apenas sol, lua e ele estavam presentes. De sede, suas palavras foram ficando arídas, e de arídas, escassas, e de escassas já não mais falava. Já não importava a voz, pois quem dirigia palavras àqueles que vivem do papelão? Agachou-se para pegar os panfletos que inundavam as ruas, invisível à motoristas e pedestres senão por visível incômodo que lhes provocava a carroça nas ruas e aquele cheiro de bicho humano na rua, cheiro que os civilizados chamam de sujeira, ou de falta de higiene, cheiro que é um sinal, doença. A aridez de sua boca se estendia à seu redor sem esforço, sem precisar querer, ou mesmo sem querer este querer, nem precisava abrir a boca sedenta, os homens já se dispunham a secar aquilo que lhe era próximo. Bicho dos desertos! De longe era um camelo, o camelo é por demais robusto. Era um bicho dos desertos! Quem sabe um inseto, pois já estava tão seco que sua pele e a de um inseto se confundiriam. Era bicho de desertos! A cada passo na metrópole, areias sem fim prenunciavam seus andares, areias sem fim anunciavam suas marcas, areias movediças para os passantes, que sempre se sentiam de alguma forma tragados por aquela figura, apenas figura, pois não podiam mais que isso, procuravam um lugar seguro, um chão firme, uma marquise qualquer que os escondesse daquele sol que empesteava o papeleiro. Bicho-deserto! Tal como o escorpião, perseguido pelas chamas dos homens por um veneno desconhecido, perseguido não por ser desconhecido entre os homens, mas por carregar um desconhecido que as bibliotecárias não sabiam nomear. E em toda sua fraqueza, resistia sedento, sede que cede a um olhar abandonado um pedaço de osso, sede que cede ao só um companheiro, sede que cede suas lágrimas às lambidas de um amigo sedento. Quem sabe depois de tanto tempo sem água, ela lhe fosse intragável, de tanta sede já não lhe faltava mais, e de não faltar mais, podia seguir, resistindo sedento. Como se seu deserto carregasse não uma ausência de mundo, mas uma força, uma presença que fazia durar mundos, como se o deserto desse passagem a frágeis mundos que aos olhos extasiados com o mundo do belo, e da promessa do mesmo, seriam imperceptíveis senão por estas série de solapamentos e terremotos, estas cisões que a fragilidade causa nas coisas. Papeleiro, pessoa-deserta.