sábado, 31 de julho de 2010

Nemesis

Um pé em recuperação, dois na dança. Enfim você passa a entender as marionetes de Kleist, e o que é ser guiado por uma linha, belamente guiado por um fio. Tão sutil, tão fino, e tão desprovido de vontade humana. O movimento, puro, pura brincadeira de forças. Sem reacionarismos do medo e do pavor, apenas entrega. Entrega ao chão e à gravidade.
Os instintos também se vão, corpo sem esforço, que desaba na queda e lhe cai como uma pluma. Não se sabe mais diferenciar humano e animal, pois se despecializaram, despedaçaram em configurações inumanas, sincréticas, diaspóricas. O contra-movimento, o contra-peso não se tornam a negação de fluxos, mas sua intesificação e diferenciação, movimento além da dualidade excitação/repouso. Entrega à determinação gravitacional, e do peso lançar vôo. Um braço que se vai no espaço não é um elemento, mas uma colônia, um povoado de forças, multidirecionais, multidimensionais. Fuga constante dos si, fuga que é luta expressiva. Síntese mutante de um fora. Pensa-se então, a dança, por inteiro, é composição pura?

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Vaso ou cachorro?

O jovem, depois de ter se acostumado a suas tarefas, resolveu mudar o foco
ia dar um passeio, arejar a cabeça
tirou os óculos, pegou a chave
viu aquela coisa e brincou "Vem! Vamo passea!"
e a cachorra ficou confusa
não sabia se o jovem falava com ela,
ou com o vaso a quem se aproximava

sábado, 17 de julho de 2010

Risco e garantia

Arrisca-se em nome de garantia
Arrisca-se por garantia
garantia de que o risco não passe de um cisco
garantia de que o risco vire riso
Arrisca-se para sair da jogada
Arrisca-se sem peito, sem pêlo
Arrisca-se de corpo jogado
com garantia de um corpo estruturado
Arrisca-se sem desabamento
Arrisca-se sem carne
mentira, a garantia é a carne
a garantia é a carcaça
Arrisca-se em nome de outro
pois a garantia é a pele de outrem
e o risco, agora é de outrem
Risco garantido é sopa de covarde

sábado, 3 de julho de 2010

Toxicomania

Queremos elevar o humor, queremos escolher nossas tristezas
saber quando deprimir, quando aquietar-se
e nós, últimos assépticos, não queremos drogas, ou remédios
queremos iluminação, luzes de outro mundo
acreditamos em palavras, lemos tudo como se fosse um conto
a bíblia, mais uma crônica
a filosofia, um romance
um conto imaculável, que nos livre do nojo da carne
mas quem escreve é um contista, não um iluminado
e contista sem veneno adoece
quem sabe, é o único homem que precisa do veneno para trabalhar
se envenena para envenenar
o contista é irremediavelmente um maculador, um disseminador
contamina ao toque, pois só assim é levado a sério
se não há tragédia, quem pensa?
Um homem inteiro que não é
é muito pesado, atrapalha
a condição do contista é ser parte, um fragmento
se fosse grande demais, ninguém engolia
o contista se faz pílula, venena-se
é tomado pela rotina do mundo
e faz a rotina do mundo o tomar
rotina que reprime patias, sejam simpatias ou antipatias
patias do phatos, caminhos, caminhos reprimidos
rotina que corrói caminho de volta, a lembrança
rotina que corrói a própria história
contista que deseja agir pelo coração, irracional
mas só sabe agir por vontades, no momento, esgotadas
pensou em se analisar,
mas psicanálise rotinada é lápis apontado demais,
não há mais grafite para escrever, só um toco de madeira
contista analisado, contista que se entende
até tempera as dores do tédio,
mas não abole as jaulas do tempo rotineiro
e seu veneno, enfim neutralizado
enfim, contista neutralizado