quarta-feira, 21 de abril de 2010

Quando o ócio virou tédio...

Eram duas da manhã. E no messenger via-se os status daqueles ainda online, e ainda lembro daqueles que já se foram. Um quase coro, um musical gritando de tédio e seus derivados.
Não ter o que fazer virou tédio. O ócio virou tédio. E o tédio gera padecimentos.
Nesse mundo de velocidades que vivemos, ao invés de ficarmos mais leves, estamos tão pesados quanto na época das carroças. Nosso corpo, ao invés de ser uma pluma que acaricia o outro, tornou-se nosso confortável e macio exílio. Nossas pernas foram criando raízes a um solo que se desmorona, não quer largar, não quer deixar ir.
E o homem agora se guia por sua própria blindagem, deixou de ser um elo de mundos e tornou-se uma couraça. E o tédio? No corpo blindado já não passam mais afetos, não há passagem de entrada nem de saída. Nesses corpos que deixaram de ser passagens os afetos estagnam e transformam-se em tédio.
A abertura ao ócio já fica cada vez mais comprometida, e o pular descomprometido pelas terras da existência se tornam uma raridade. O que assola é um homem constituído de deserto, não mais capaz de ser outro.
Esse grande deserto passou a cafetinar a vida, a estuprá-la, a fazer dela sua escrava. Ele mente. Suas areia são mentirosas, sibilam pelo ar nos contando que já não há outro mundo possível, mas é a tempestade de areia que faz diante de nossos olhos que nos impede de ver a possibilidade.
O movimento a ser feito é paradoxal, o mundo ficou pesado, mas é da leveza de que necessitamos nos libertar. Nesta superficial leveza somos levados pelos encantos do deserto e derrubados no chão toda vez que nos aproximamos das tempestades. Para nos liberar dele, precisamos ganhar peso, dar novas formas ao nosso corpo que sejam capazes de ir além das tempestades, resgatando o possível. Mas nem toda tentativa dará certo, e nem se sabe se alguma conseguirá.
Mas é num incontornável movimento da vida contra este deserto que podemos tentar reconquistar o acesso àquilo que nos guia, e não ceder aos encantos traiçoeiros das areias, para que possamos enfim reinventar permanentemente a existência.
Precisamos do ócio, este corpo que se mantém aberto, que é passagem de afetos, colocálo em movimento para que crie suas próprias histórias, músicas e sinais.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Medo da periferia

Em tempos urbanos, quem não tem medo da periferia?
Para nós, a primeira vista, a primeira representação que nos vem a cabeça é nada menos, nada mais que as favelas - independente se são as favelas do Rio de Janeiro, ou de São Paulo, ou de outro centro urbano qualquer.
A periferia não é apenas um ponto geográfico. Nosso olho do vísivel o capta assim, mas periferia não é aquilo que circunda a cidade. isto é, não somente.
A periferia está no centro!?! Como assim? No centro? Ela não se constitui nos arredores da cidade?
Para que haja os grandes centros urbanos é necessário que uma grande parcela, a chamada periferia, fundamente o plano em que o centro será constituído. O centro, então, é posterior à periferia. O dito centro ao qual nos apegamos, e às suas riquezas e belezas, é o ponto geográfico onde convergem as forças da periferia, as forças de homens, mulheres e crianças. Em suma, é uma força do comum, daquilo que se passa por entre nós, e não é um filtro representativo que é capaz de eliminá-la.
Esta força se faz no cotidiano. Na pendura do varal, na confecção do bolo e nos devaneios da rede. A casa. Este grande laboratório sócio-político, espaço afetivo onde se ensaiam formas, hábitos - mesmo que nem toda simulação vem de nossa vontade.
Passa-se um desejo por nós, mas é um cuidado que devemos tomar, uma certa prudência, pois tal desejo não vem de um eu. Vem de uma realidade que ser atualizada, e algo em mim opera neste sentido, pois algo gora, perde o brilho e o viço, algo resiste e tenta ficar em pé, mas são necessárias outras formas, outras matérias de expressão para que o brilho venha à nossa existência.
E a periferia, ou melhor, o fantasma da periferia é o fantasma que fica em nosso cangote, respira pesado e faz gorar aquela máscara que usávamos. Esta respiração ofegante, algo meio que maquínico que não permite a simulação estancar. É o fantasma que está lá, suscitando em três formas o medo.

1. A periferia é violenta
O primeiro medo, é o medo da morte. Abstraímos, nós, moradores-consumidores dos grandes centros urbanos, a violência em nós, a violência de nossos hábitos, a violência que nos permite estar no lugar onde estamos.
Negamos a guerra, negamos o mal, mas nosso corpo parece que está em guerra. O tempo todo estressado, é um medo que devora a alma, que percorre a existência. Medo de sair de casa, aquele antigo útero materno onde todos estávamos protegidos contra o fora. Mas essa casa já caiu, ela se faz misturada com o mundo, e já não é mais um anjo da guarda. Temos que sair, dia-a-dia, da casa.
Não acreditamos mais nas ruas, e o rosto do outro, olhar no rosto do outro é um ato de coragem. Em uma multidão, como não saber se o próximo é um ladrão, um pedófilo, um tarado ou um psicopata? E desconfia-se de tudo, de qualquer gesto, e se estender a mão para alguém, você ganha um relógio, quem sabe uma bolsa, mas jamais um aperto de mão.
Olha-se para baixo, que do alto se vê as pessoas ao redor. Não, não. Cada um é o mal em potencial, é aquele que nos ameaça. É aquele que pode nos mandar para a periferia.

2. A periferia é o fim do mundo
Quem não ouviu as constantes ameaças do mundo, que se não estudar, se não se dedicar direito, viverá nas favelas. Mas não é preciso mais pegar um ônibus para a periferia para se estar nela. A periferia é o fim do mundo, ou melhor dizendo, é o fim de um mundo.
Estar em contato com o periférico e seus habitantes já nos provoca uma série de afetações, muitas de indignação, de recusa a este modo de existência. E medo deste modo, pois ele pode estar mais próximo do que imagina. Medo por que ele é limite, território-limite de nosso centro. E ao "reformá-lo", querer mudar as condições de vida de lá, estamos inevitávelmente encarando as forças que nos constituem, aquelas mesmas forças que nos permitem circular pelos centros e ser o centro de suas atenções.
Encarar a periferia é encarar seu mundo, seu chão. Lá que está o sutil fluxo que ora dá sentido ao que fazemos, e ora os tira. A periferia sensível é onde nossos corpos já começam a capengar, tropegar. E arranjar forças que lhe permitem sustentar essa perda de sentido e não cair no desespero não são tão fáceis de se encontrar.
É toda uma relação com o outro que deve ser construída, uma relação que ampare a queda, não para que se diga que não ocorreu queda alguma, mas para que essas mãos que nos seguram antes de tocar o fundo do poço nos dêem espaço para que possamos construir um novo habitat. Para que possamos fazer vigorar um novo mundo.

3. A periferia é singular
Do social, das vivências, recortamos encontros, e estabelecemos relações entre estes encontros, vitalizantes ou decepantes. Do encontro, fazemos permanecer um traço, e o conjunto destes traços formamos um mapa, toda uma estruturação ecológica de nosso ser. E ao estar imbricado nessa ecologia, temos um grande papel, que é ser um estrategista da existência - perceber onde está reluzindo um ínfimo brilho e intensificar aquela luz, e onde já se há uma imagem opaca e pesada, ajudar a decompô-la. Um sutil exercício para sustentar territórios existenciais.
Eis que estamos diante de nosso medo psicológico: a loucura. A loucura é a periferia da razão, necessária e angustiante ao mesmo tempo. Necessária, pois é através dela, de seus movimentos que a razão não é uma abstração cristalizada, e podemos compor com o mundo em maior ou menor escala, uma razão sensível às alterações do mundo. Angustiante, pois ao adentrar no território da loucura, perdemos aquele chão firme, aquele fundamento que nos sustêm, e ficamos à deriva num mar revoltoso, onde o mundo nos engole e já não somos capazes de compor com ele eficientemente, é o delírio que nos afasta dos encontros, a persecutória que está atrás de nosso ouvido.
Ao avançar neste território, nos perdemos facilmente, e sem amparo, nossa vitalidade pode ficar com graves cicatrizes. Cicatrizes afetivas, orgânicas e sociais. Pois não é todo outro que ampara, ou aceita, a loucura que carregamos.
Mas falei do medo, mas ao mesmo tempo falei que a periferia é singular. Por quê?
Esse medo, que definimos até então a partir de três fios: o medo da morte, o medo da perda de sentido e o medo da loucura, são três movimentos de um mesmo medo. O medo da exclusão. Estar fora do mundo dos "vivos", não estar circunscrito na ciranda social ou nos postulados da razão são formas de exclusão de um mundo. Um dentre os possíveis.
A questão é que o singular anda ao lado da exclusão, pois nunca se sabe o limite de suportalidade da rede para a singularidade que encarna em você, e uma singularidade por demais intensa ou uma rede rígida demais pode se romper com estes movimentos que tecem este real-social.

4. Para além do medo
Habitar a periferia se faz um movimento preciso, não por uma boa-vontade social de enfeitar o mundo, mas pelo tipo de cidade que queremos habitar. Aliás, deve-se fazer esta pergunta: que tipo de cidade queremos habitar?
Periferizar o pensamento de nossos grandes centros urbanos, onde uma grande abstração teima em reger nossas vidas, nossas percepções, nossos modos de amar e pensar, em suma, nosso cotidiano. É necessário sair das avenidas centrais por onde circulam nossos afetos para encontrar um lugar onde constituámos um plano com o outro, algo comum entre nós, e possamos construir um ritmo comum para uma, mesmo que breve, troca de afetos.
Lembrar que nos diferimos daquilo que somos não porque temos vontade, mas algo que está em constante produção não cessa de tentar se atualizar em nós, por meio de nós, e basta abrirmos um canal com este que me é exterior para ele se efetuar. Transforma-se não por dentro, mas pelo contato com o fora, com a periferia.
E é pela periferia, por estes limites de nosso ser que podemos construir uma cidade singular. E para uma cidade singular, a construção de uma ética da singularidade, onde se faz dos homens grandes experimentadores da vida, audazes aventureiros, que não apenas colham aquelas diferenças que já estão no campo, dadas, mas que produzam novas diferenciações, novos contatos com uma periferia que a cada momento se difere. Assim poderemos fazer do homem um afirmador de existências singulares.
Superar o medo é preciso!

segunda-feira, 5 de abril de 2010

O mundo é leve?

Devagarinho um menino se aproximou, puxou-me pela barra da calça. Queria chamar-me a atenção. Pequeno, deveria ter seis anos. Eu, por demais atarefado, deixei-o alí, em seu canto.
A despeito de minha concentração, berrou meu nome, e pediu-lhe pra responder uma pergunta. Uma única pergunta e me deixaria em paz.
"Fe, você que estuda tanto... o mundo é leve?"
Essa pergunta me desconcertou. Não, eu não sabia. O menino se foi desapontado. Não tornei a vê-lo por muito tempo. Tempo até demais.
De que adiantaria dizer que a Terra pesa toneladas e mais toneladas, mas comparados com o peso do universo, somos uma pluma à deriva? De fato, naquele momento, nem essa resposta eu tinha...
Apenas uma cara de expressão vazia, desapontada com o mundo. O menino não precisou de minhas palavras, bastava ver meus olhos secos e minha atenção fúnebre. Sei que aquele menino ficou muito bravo comigo, e anos a fio não quis falar comigo.
Tudo era feio, e o mundo não rodava. Já acreditava em nada, já não confiava em nada. E um choro reprimido daqueles que não querem chorar ficava guardado no peito, ocupando uma boa parte de espaço. A vida passou a ser um incômodo.
De dia fugia da própria sombra, à noite buscava a resignação nos estudos e nas promessas de mudança. Estudei, estudei... e o mundo não mudou. Aos poucos eu mudei, fugindo duma couraça, mas entrei em diversas outras. Passava a acreditar em alguma nova mitologia: a ciência, a arte, a revolução. Mas logo passava, ia em vão.
Mitos são apenas mitos, dizem. E fadas, minotauros e sereias são apenas mitos. E mudar é um mito. Deixei de acreditar nos mitos, e com isso, na mudança. Mudança mesmo que de uma única coisa, uma única pessoa, mesmo que seja eu esta pessoa que muda.
Se já num tinha esperança em mim, como o teria do mundo? Aquele menino que me deixou alí, sentado, tinha razão de estar bravo. Eu desistir de mim, eu desistia dele. E ele me estimava muito.
"Olha aquela flor. Deixa a borboleta voar"...
E eu ignorava. Custava-me entender...
O mundo se tornará pesado, demasiadamente pesado. E já não queria mais levá-lo.
Mas esse menino inquieto volta. Já não é mais um menino. Já é homem, mas também é pássaro e é leão. Ele sabe que a vida é muito mais que nosso umbigo, que nosso sofrimento, que nossa asma existencial.
E vem aqui a conversar comigo, um velho precoce. Visita-me como um amigo. E eu me sinto num asilo. Quero colocar o pé na cova, mas ele não deixa. Não porque eu seja jovem ou velho, não é isso que ele implica. É viver como um cadáver que ele não aceita.
Eu retorno sua pergunta então.
"Descobriu se o mundo é leve?"
Ele balançou gentilmente a cabeça e disse
"Um mundo é apenas um mundo. O que importa é o que você faz com ele."
Soltei um riso sutil, não acreditei nele. Pareceu-me um pouco de infantil essa afirmação. Ele sorriu de volta e disse que logo voltaria. Fiquei lá, meditativo.
Mal reparei no pequeno bilhete que deixou, um pequeno poema escrito às pressas
"o que torna pesado ou leve o mundo
não é a alegria ou a tristeza que temos,
mas os nossos sonhos e sua falta."

um pequeno manifesto do sonhar que deverá ser escrito...

domingo, 4 de abril de 2010

Por que escrever se faz uma atividade tão difícil?
Não só de colocar as palavras em atos, ou pincelá-las no fundo branco do word como diria um amigo.
Quem dera a dificuldade de escrever fosse a falta daquela palavra, aquela palavra mágica que destrincha mundos... mas não
Escrevo sobre o escrever porque não consigo escrever o que quero, o que me passa.
Estou insône, a cama não está convidativa. E nesse meio termo uma nuvem, algo gasoso que me dá náusea - e não é do lixo da cozinha.
Olho para o computador, ele olha pra mim. Me encara. Há algo de estranho nele.
Fico-o observando, é como se ele estivesse a ganhar vida, brotasse pernas e fugisse de mim...
ou quem sabe ele já o fez, e o que agora contemplo é um cadáver, um abismo de metal, plástico e chips - microchips.
Essa fascinação ao mesmo tempo que me é estranha, me é familiar...
queria que outra parte da casa fizesse barulho, um rato na cozinha, uma vassoura caindo na varanda, folhas voando da escrivaninha. E nada. Um pio sequer nem do menor dos seres daqui.
Ouço apenas a respiração, minha respiração, quebrada em movimentos para dentro e para fora, e esta outra respiração, contínua, um barulho a princípio enlouquecedor, mas logo nos acostumamos.
Respiração das ventoinhas. Se bastasse respirar, estaríamos ambos vivos, mas eu duvido que isso basta, não basta um computador respirar para ter vida, tal como não basta alguém respirar para ter vida, e muito menos inteligente...
Logo após um tempo, o corpo zune em ressonância com essa batida binária de 0s e 1s. Corpo que vira máquina, e a medida que maquiniza, produz.
Esta escrita, conjunção mãos-teclados, não é necessariamente original, mas uma escrita necessária. Parece-me que quando os dois estão juntos, eles teclam, teclam sem parar, sem se preocupar muito com o que vai sair. E cada vez o espaço de tempo da escrita diminui.
Pena não poderem ler à medida que isto vai se escrevendo. O blog não permite - poderia fazer um flash, mas isso exigiria um trabalho que no final não atenderia a esse (des)sentido.
E o chão vibra! Vizinho que vai buscar água no filtro. Não sei se há vida lá, mas sei que algo faz vibrar, já não somos um caso de amor eu e computador, outros sons se fazem.
O apito do guardinha, o som de um carro nômade, e de longe, bem baixinho, o som do mar revoltado.
Mas eu vou cansando, meu corpo vai cansando. Ele não, este outro corpo mantém-se imovél, operante, iluminado. Enquanto o meu vai escorregando pela cadeira...
O cansaço já me abate apesar de não haver sono. Já deste companheiro, só se vai porque não há mais quem teclar.
Enquanto isso prestarei em meu altar-cama as oferendas noturnas: meus sonhos, fracassos e minhas divagações. Oferenda precisa, para que se possa levantar mais um dia.