segunda-feira, 30 de maio de 2011

Prenúncio de uma escutação

Como furar o ovo que se comprime à nós, caro Abreu? Aquele muro branco, que quando dito, somos perseguidos pela multidão. Aquele muro que é o ovo de cada um, aquela parede que insistimos manter, e assim há eu, e você. Você, e eu. Será que nos resta apenas uma opção, aguardar, enclausurados, nosso sufoco? Onde estão as vias do possível? Um pouco de possível, senão sufocamos, não é Deleuze? Em meio a tantas políticas públicas, falta-nos aquela que combata esta cronopolítica, onde o tempo e a disponibilidade são exceções em meio a um mar revoltoso de vertigens, entre congelamentos e acelerações, como diria o amigo Pelbart. Em meio a isso, que espaços de comunicação, diferentemente dos de informação, temos em vias concretas? Que momentos, que passagens abrem espaços para uma escuta de silêncios, espaços onde a escuta não é confissão. Escutar como uma espécie de arte, daquelas em que nos percebemos frágeis elos entre forças poderosíssimas. Será que bastaria colocar à espreita nossos ouvidos nessa parede, auscultar o outro de fora de nossa casca? Estar perto o suficiente, afetar-se, não seria esta uma possibilidade para que este branco asséptico se contamine? E na contaminação mútua, esboçar um mundo comum? Mundo em que coincidamos com os desejos e o gosto de viver, de alargar horizontes, ao invés de afunilá-los? Medeiros, Medeiros, será que poderíamos fazer pequenos traços rumo a uma cidadania outra, movida não pelos contratos, mas por delicados códigos do coração de cada um? É preciso sensibilidade, Pessoa, para interromper um estado, parar de dispersarmos nossas vidas em elipses absurdas. Eis que é preciso fazer recordar, recordar a escuta, lembrando da origem latina de recordar - re-cordis - que significa fazer passar pelo coração. Escutar pelo coração.


Se escrevo, é por lágrimas
o resto, é efeito de cópia

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Aberto à porta

Hei de admitir, sou péssimo em ultimatos!
De todo fim fiz, na verdade, uma porta
cuja chave não sei os segredos...

Entre amores e projetos, habitar o entre
mal de geminiano, dizem
mas o que dizer se, quando habitamos a passagem
é a própria vida que passa a nos habitar
e num sutil movimento
um corpo esburacado
cuja mensagem é um sugestivo
entre...

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Segurança

Talvez fosse um homem, ou mesmo uma daquelas mulheres castigadas pela vida
era difícil reconhecer ao fio da penumbra, a criatura vagava
num pranto tão profundo que refletia o horror do observador
pranto que lia alma, olhava sem piedade o rastro deixado
à cena um resquício presentificava o ato
rastro que atravessava o comôdo
rastro que atravessou histórias
os fardados chegaram, mas um era irrisório
tão depressa chegaram, tão tardiamente foram pouco depois
os prantos se tornavam soluços, gaguejos
a alma, enfim, quebrada
rasgada
uma ferida, daquelas que nunca fecha
sem chances de cicatrização, ou de redenção
ferida que acompanha o rastro
ferida que se contamina com o sangue de outro
deu três passos para trás, elevo o punho à altura do queixo
por mais força que fizesse, por mais que aquela dor de cabeça se intensificasse
o irrisório estava face-a-face, onde nem cerrando as janelas de nossa alma
nem estourando nossos tímpanos o irrisório deixaria de ser presente
os fortes não choram, agem - pensava o observador
muito sangue derramado cega, e é quando os justos se levantam
naquele momento preciso onde agimos para remoer-nos
daquele ato, justamente julgado, e mesmo assim imperdoável
e os justos, frente ao trágico, cansados das ordens astrais
fundam seu mundo por um desejo minado
para salvar o organismo
a vida deve ser travada ali onde o risco a diferencia
e, sem fim, os justos fazem do outro o campo de guerra