sexta-feira, 15 de maio de 2009

Aos anjos nesta terra

É engraçado os dias atuais, mas não um engraçado cômico... é um engraçado quase que mórbido.
O que estamos fazendo de nossos dias, de nossas horas, de nossos momentos? A cada dia que passa eu faço a questão - o que estamos investido em nossas vidas, e o que desinvestimos em consequência disso?
A gente pode fazer um apanhado geral do contexto que estamos vivendo, a pós-modernidade, os costumes de nossa época e nossos modos de se relacionar, mas isso vou fazer de um modo bem corrido, então perdoem o risco de ser simples demais sobre nossa situação.
Um enunciado que tem muito aparecido nestes últimos tempos é que vivemos numa sociedade narcísica, com um profundo investimento no eu, nisso que chamamos de si, e existe uma angústia, uma insegurança, e porque não dizer de um certo melindramento, perante o outro, o diferente. Para quem estiver mais interessado na questão da sociedade narcísica, eu aconselho a ler A cultura do narcisismo de Christopher Lasch para um futuro aprofundamento. Então, segundo esse autor, na cultura que ele analisou, que é a cultura norte-americana de décadas atrás, encontrou-se um padrão de sociabilidade que desinvestia nas relações com o outro e a dimensão pública, passando a um adensamento dos atos, das práticas e dos discursos sobre o indivíduo e a dimensão privada da vida. O que nos interessa isso? Interessa saber que apesar de isso se dar décadas atrás, ainda encontramos bastantes ressonâncias disso nos dias de hoje, no nosso cotidiano.
E outro texto que pode servir para ajudar nessa contextualização é A sociedade do espetáculo de Guy Debord, nele encontramos elementos que nos dizem um pouco sobre essa nossa obsessão pelas vidas e minuciosidades dos atores do espetáculo, nossas celebridades, e como acabamos usando elas como modelos em nosso processo de construção de identidades.
É referente a essas duas correntes de pensamentos que eu quero articular para pararmos um pouco e refletir, novamente, o que estamos fazendo de nós mesmos?
Quanto tempo dedicamos a decorar, estudar minuciosamente a vida de nossas celebridades, aquelas que aparecem na televisão, no cinema, nos estádios de futebol, nos shows de música, e queremos tornar-mo-nos elas, incorporar seu estilo, seu modo de vida, seus hábitos.
Quanto tempo dedicamos ao culto de um corpo perfeito, sob o modelo, que por acaso é baseado na exceção, de nossas celebridades, e nos tornamos infelizes por não estar dentro da norma, das regras e dietas do corpo?
E para cultivar esse corpo, esse estilo de vida, quantas vezes não deixamos de lado amigos, mães e pais, irmãos, filhos? O que deixamos de lado, desinvestimos para estar dentro desses modelos que se baseiam na exceção?
Eu quero lhes contar a história de uma mulher que mudou milhares de vidas. E por que digo contar ao invés de lembrá-los? Provavelmente ninguém ouviu sobre ela, ela partiu desse mundo há pouco mais de um ano, dia 12 de maio de 2008 seu espírito deixou seu corpo de 98 anos. Um dia depois de sua morte, um grande jornal nosso e de renome publicou em um breve artigo:
“Morreu ontem em Varsóvia, aos 98 anos, Irena Sendler, que salvou milhares de crianças judias durante a ocupação nazista da Polônia. Entre 1940 e 1943 Irena, que era assistente social, tirou 2500 crianças do Gueto de Varsóvia. Ela chegou a ser presa e torturada pela Gestapo em 1943, mas nunca revelou os nomes das crianças que salvou”.
E podemos dizer na ponta da língua qual o número do sapato de nossa celebridade favorita, mas não sabemos nada desses verdadeiros anjos que caminham entre nós e que dedicam suas vidas em prol de um ideal de fraternidade e amor. Uma frase que marca muito dessa mulher é sua explicação de porque ajudou essas crianças, judias ou não, que viviam nas vielas escuras de Varsóvia.
"A razão pela qual resgatei as crianças tem origem no meu lar, na minha infância. Fui educada na crença de que uma pessoa necessitada deve ser ajudada com o coração, sem importar a sua religião ou nacionalidade." - Irena Sendler
E nos dias atuais, o que fazemos? Ficamos cada vez mais absorvidos com a paranóia do fitness e das dietas, ficamos nessa busca obsessiva do corpo perfeito e da saúde, ficamos tão centrados nessas atividades pra quê? O que ganhamos com isso?
E pensar que antigamente, lá na época dos gregos, existiam os exercícios, treinamentos do corpo e da mente, mas essas práticas não eram a finalidade, mas o meio para se obter um determinado objetivo, que era ,digamos assim, sendo simplistas mesmos, um amor à Pólis, era uma forma de produção de estilos de vida que muitas vezes eram discordantes da hegemonia dos hábitos dominantes.
Hoje, essas práticas e exercícios tornaram-se finalidade, aquilo que era destinado à Pólis, à um outro, à uma certa alteridade, torna-se direcionado ao corpo, ao indivíduo, e agora são destinadas mais para a normalização da vida, um adestramento do corpo e dos estilos de vida à norma dominante do que um potencial de resistência cultural.
E agora?
Nesse adestramento do corpo sofremos, sofremos porque acreditamos hoje que nossos problemas se dão hoje por uma falta de responsabilidade perante a rotina e as práticas diárias que agem sobre o corpo. Aconselho a ler o que o professor do Instituto de Medicina Social da Uerj Francisco Ortega fala sobre esse tema em seu artigo Práticas de ascese corporal e constituição de bioidentidades. E esse adestramento de certa forma nos torna insensíveis a esse outro, quantas vezes pensamos nos necessitados e em como podemos ajudá-los, ou melhor, quando agimos para ajudar, como o fez Irena Sendler?
Podemos dizer que os dias atuais são bem mais tranquilos, e dispomos de muito mais conhecimentos, técnicas e recursos do que essa mulher fez durante a época do nazismo, mas apesar da abundância que temos à nossa disposição vivemos de forma mesquinha, pois não só negamos o outro, como perdemos o potencial das relações com esse outro, o que poderiamos ter construido com isso. Ao negar o outro, acabamos ficando mais pobres e não vivemos numa plenitude que poderia ser mais frutífera.
Eu espero que você não esteja confuso pelas voltas e voltas que dei até então, eu queria apenas mostrar o quanto acabamos vivendo num mundo que cada vez mais exclui o outro e que a gente se esquece que podemos investir em outra relação com o mundo, eu trouxe o exemplo de Irena Sendler, porém existem muitos outros exemplos que não são divulgados pelos nossos meios de comunicação, ao menos não com tamanha importância, e que esses exemplos nos fazem lembrar que é possível ser diferente e de fazer uma mudança, ter uma singularidade que inspire, torne-se uma luz que estimule outros a ver a vida de outra maneira.
Termino aqui com uma frase de Marcel Proust, e espero que ajude a reflexão, e não a complique ainda mais
"A verdadeira viagem de descobrimento não consiste em procurar novas paisagens, e sim em ter novos olhos" - Marcel Proust

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