quarta-feira, 13 de maio de 2009

A desmanchar

Há muito tempo tenho investido em uma trama, uma conjectura de fios que articulam-se e rearticulam-se damesma forma. Uma produção industrial, artesional de um estilo de vida que já indica seu próprio esgotamento. Lembro-me de Penélope, aquela de Ulisses, que a cada dia, esperando seu ser amado, ficava a fiar uma manta à seu velho sogro, mas Ulisses não voltava, e toda noite desfiava o tecido, para que dia seguinte recomeça-se a produzir o mesmo. Como alguém fica anos e anos da sua vida, numa situação drenante, entediante, reproduzindo, reencenando a peça do cotidiano, a espera de príncipes encantados, de promoções e elogios que podem vir a nunca serem concretizados? Por quanto tempos somos essas Penélopes da vida, restituindo, reterritorializando a mesma trama? Noucateamos a nós mesmo, esgotamos nossas forças físicas, mentais e emocionais, impedimos o fluxo da criatividade para manter as rígidas margens que nos cercam onde estão, e nisso o que está dentro, que a gente tenta reprimir, delimitar, começa a ficar turbulento. Essa força, essa ânsia em nós, de nós, trans-nós, fica fervilhando, ela não aguenta o maquinismo da produção em série, não aguenta que os fios se entrelacem sempre do mesmo jeito, ela desperta uma necessidade de remanejamento, rearticulação das tramas, um fazer diferente, um fazer que se desterritorializa, o nós e os nós devem ser desfeitos para que novos possam ser pensados.
Precisamos desmanchar a vida constituida em nossa fetichização e tomar rumo, desmanchar para que novas formas de interação sejam feitas, sair da semiotização que nos é dada como é certa, parar de achar que tudo é ou tem que ser uma re(a)presentação do passado. Precisamos fazer uma força para desmanchar a trama de nossas vidas. Mas por que desfazer aquilo que já está tão bem fundamentado, que nos é conveniente apesar de não nos gratificar? Dá muito trabalho mudar, um trabalho psíquico enorme, mas se não o fizermos, para cairmos no risco de uma extrema alienação, dum fetichismo obsessivo e, claro, às nossas pequenas têndencias fascistas são dois tempos, estamos numa corda bamba, e se não prestarmos atenção, caímos no chão com a cara estampada no nosso pequeno estilo de vida, não conseguindo ver outros modos de viver, de interpretar e significar. É difícil para alguém com a cara atolada na lama olhar pros lados.
Fetiche, alienação e fascismo, esses três enunciados andam lado a lado. O fetiche é a fixação de uma semiótica, uma visão de mundo, um processo de significação-mundo, no fetiche somos seduzidos, hipnotizados a esse determinado objeto, há uma extrema necessidade de posse, seja fisicamente, ou seja uma dominação no campo mental, é como se colocássemos uma viseira em nós, para que não seja possível enxergar os outros lados da história, cavalos de corrida que obedecem a seu cocheiro, aquele poder que temos de fazer, de transformar é inibido em prol a uma ordem superior, o nosso feito, nosso poder-fazer já não é mais de nossa autoria, mas da autoria de nosso objeto fetichizado, este exerce um poder sobre nós que os efeitos e causas mal poderiam ser abordados nesse texto, e essa viseira que nós e que nos é colocada advém junto com a nossa alienação, ao deixar de ver outros mundos, outras óticas, o que nos resta? Resta acreditar que aquilo que está sendo feito sempre foi assim, numa lógica de territorialização-esquecimento, funciona assim, nós que somos seres que temos um poder sobre o fazer na realidade articulamos os elementos desta para criar uma concepção de vida, criamos um modo de interagir com esta realidade, mas o que acontece aqui? Acontece que ao criarmos esses estilos de vida, nós criamos territórios ondes os elementos da realidade se encontram, e os elementos que não eram úteis ou atrapalhavam a significação desse estilo de vida são marginalizados, negados e por fim esquecidos, tendemos a esquecer os processos e as forças que nos articularam a ser como somos, e se ficamos imersos na inconsciência, continuamos a ser agentes passivos dessas forças que atuam sobre nós e continuamos na alienação. E na alienação também encontramos a repulsa e o dogmatismo que ajudam a construir os pequenos fascismos diários que praticamos. E como esses fascismos cotidianos se apresentam? Sobre várias formas como preconceito, posturas irreflexivas, posições de dominação e qualquer ato, mesmo na conduta entre amigos e amantes, que seja contra o diálogo e a liberdade subjetiva, ser fascista é ser contra desterritorialização da vida em prol de novas articulações, é não perceber que na existência as coisas não sao isso "ou" aquilo, as coisas podem ser isso "E" podem ser aquilo, uma visão de mundo não dispensa a outra, mesmo a científica e a religiosa.
Desinvestir é a peça em questão no desmanchar, eu desmancho porque eu não quero mais investir nessa relação, nesse trabalho, nesse tipo de vida que venho levado, eu desmancho porque quero coisas diferentes, quero sair daquelas quatro paredes e aquele teto feito por mim e meus ancestrais que dizem nos proteger do lado destrutivo da vida, eu desmancho essa minha proteção porque eu quero ver a vida, e não mais sobreviver, quero estar imerso na vida.
Eu desmancho para viver.