terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Shuffle – um diálogo caóide de músicas

Por trás da presença de uma melodia, um outro mundo se abre para nós. A música, sua vibração, sua imagem, apesar de parecerem deglutidas pelo capitalismo, e assim apaziguadas na forma de mercadorias, para os nossos corpos não é assim.

Nossa carne é arrastada pelos ritornelos, essas repetições circulares que se esbarram, e assim como o rio desvia da pedra, a melodia toma outro rumo ao esbarrar com tamanhos “obstáculos”. A música pode ser desintegradora – podemos perder nossos eus música, nossos sentimentos, perdemos em breves instantes nossos rostos, caracterizados pela individualidade e pela historicidade.

Um timbre permite nos ver com outros olhos, uma música tribal leva nosso corpo à sua profundidade animal, uma música mecânica evoca o que há de não-humano, quem sabe o não-orgânico de nós. Os fluxos dessas imagens sonoras são perigosos. Ao mesmo tempo em que algumas forças compõem, outras estão intensificadas ao limites de nossa alma, deformando-a, rompendo-a em seus limites.

Dá-nos uma nova alma, a música tem esse poder. Ela nos afeta em nossa superfície, nossa derme e nossas vísceras. Afeta mesmo nossos corpos que não são opacos, pertencentes a universos incorporais. A música é poder. Um poder magnífico, divino. Como também necessariamente diabólico. Pois para uma pele ser tecida, a antiga precisa ser desfiada. Meu território deve passar por uma mudança.

Sendo levado pelos toques dos instrumentos e os gestos sonoros da cantora, meu rosto se desfaz – toda história nele contida, aquilo que me tornava indivisível desaparece. Já não estou no mundo empírico, no mundo das formas – alcancei um outro lugar, tão real, e ao mesmo tempo tão pouco compreensível. Acredito que este seja o mundo das forças, das singularidades que compõem as formas e o tempo, um tempo que não é tripartidário, pois o que há é momento em que as forças me levam, me tocam, me marcam.

Nesse momento, algo destituído de qualquer história e intenção se expressa. Uma força, um fluxo, um afeto. E esta expressão se bate com outras, e mais outras, criando um novo território para minha alma, um lugar em um outro tempo, um tempo que não é o da extensão, mas o tempo da intensão – as tenções internas das forças que constituem meu corpo. Espaço onde o invisível dança, e podemos apreciar os gestos desse desconhecido que vai tomando forma, que aos nossos novos olhos podemos percebê-lo. Sair do mesmo que age como um imperativo, o mesmo da organicidade para a diferença da multiplicidade que se organiza.

Uma entrega superficial à música pode ser feita. Mas algo que desliza sobre a superfície do mar causa movimentos torrenciais em suas profundezas. A música estoura clarões onde da escuridão que residimos buscamos persegui-la. De superficial então, só tem a palavra, pois a força da música quem sabe seja mais efetiva que o peso da moral. Em suas melodias, na escuridão do silêncio desponta uma nota, seguida de outra, compondo os mais diversos universos. É um dó, um ré. É um composto musical.
Seus efeitos vão da inação à mobilidade extrema em nosso corpo.

A música ressuscita almas que se perderam nas trevas de nossos corpos – novas forças (que podem ser ainda mais antigas que nós mesmos) despontam e entram no jogo. Mas poucas almas são suficientes para nós, algumas ainda precisam de uma longa estada nas profundezas do mundo para esperar seu momento. Não é qualquer outro que é suficiente, deve ser um outro vital, uma alma vital, em que tua força expanda os limites da vida para além da historicidade e da individualidade/organicidade.

Minha cabeça é percorrida por esses estrondosos clarões que a música produz, minha mente se perde, e em meu corpo o que é vital vai sendo despertado. As forças vão se expressando para que finalmente possam tomar uma forma, me romper da minha forma mesma. É um além, ao mesmo tempo que um aquém – um jogo barroco de luz e sombra – onde claro há mais sombra do que luz necessariamente. Algumas almas são sepultadas nesse mundo, vão para o campo dos possíveis, onde um dia possam retornar, mas apenas quando forem vitais. O que não é mais vital volta à escuridão.

Nesse momento, não há mais eu para ser, não há mais eu para carregar uma história ou mesmo um rosto. Há um corpo carregado pelas suas diversas almas, um corpo marcado pelas alegrias e tristezas, pelas extensões e intensões. Um corpo que não é representação de algo, mas é gestualizador da expressão, esse corpo não é um jogo de palavras em que chovem marcas que não marcam, cada marca desse corpo é profundamente instalada e o afeta enquanto durar. Esse corpo que vibra no mesmo estado da música, é um corpo intensivo, um corpo ardente de paixões e suas almas.

O dia permanece muito estreito, às portas da luz rodeia a escuridão, poucas são abertas, pois mesmo essas poucas quando escancaradas podem nos levar a pior das loucuras. A luz que atravessa meu corpo e desperta as almas mais arcaicas, mais abissais, me leva à desorganização, não sou capaz de conter suas forças, seu poder, e aquilo que poderia ser vital torna-se desagregário. Necessito de tais sombras do mundo para ser quem me tornei, preciso dessas asas negras de meu corpo que me transportam a escuridão que me constitui.

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