quinta-feira, 4 de agosto de 2011

O papeleiro

Sua boca, um deserto. Há tempos que não dragava uma gota sequer de água, mal lembrava da última vez que choveu, última vez que a viu, última vez que riu. Seguia às ruas, procurando sustento e bisbilhotando vidas que se faziam às esquinas. A proposta de casamento, o assalto, o mijo do cão no poste, pequenos acontecimentos que apenas sol, lua e ele estavam presentes. De sede, suas palavras foram ficando arídas, e de arídas, escassas, e de escassas já não mais falava. Já não importava a voz, pois quem dirigia palavras àqueles que vivem do papelão? Agachou-se para pegar os panfletos que inundavam as ruas, invisível à motoristas e pedestres senão por visível incômodo que lhes provocava a carroça nas ruas e aquele cheiro de bicho humano na rua, cheiro que os civilizados chamam de sujeira, ou de falta de higiene, cheiro que é um sinal, doença. A aridez de sua boca se estendia à seu redor sem esforço, sem precisar querer, ou mesmo sem querer este querer, nem precisava abrir a boca sedenta, os homens já se dispunham a secar aquilo que lhe era próximo. Bicho dos desertos! De longe era um camelo, o camelo é por demais robusto. Era um bicho dos desertos! Quem sabe um inseto, pois já estava tão seco que sua pele e a de um inseto se confundiriam. Era bicho de desertos! A cada passo na metrópole, areias sem fim prenunciavam seus andares, areias sem fim anunciavam suas marcas, areias movediças para os passantes, que sempre se sentiam de alguma forma tragados por aquela figura, apenas figura, pois não podiam mais que isso, procuravam um lugar seguro, um chão firme, uma marquise qualquer que os escondesse daquele sol que empesteava o papeleiro. Bicho-deserto! Tal como o escorpião, perseguido pelas chamas dos homens por um veneno desconhecido, perseguido não por ser desconhecido entre os homens, mas por carregar um desconhecido que as bibliotecárias não sabiam nomear. E em toda sua fraqueza, resistia sedento, sede que cede a um olhar abandonado um pedaço de osso, sede que cede ao só um companheiro, sede que cede suas lágrimas às lambidas de um amigo sedento. Quem sabe depois de tanto tempo sem água, ela lhe fosse intragável, de tanta sede já não lhe faltava mais, e de não faltar mais, podia seguir, resistindo sedento. Como se seu deserto carregasse não uma ausência de mundo, mas uma força, uma presença que fazia durar mundos, como se o deserto desse passagem a frágeis mundos que aos olhos extasiados com o mundo do belo, e da promessa do mesmo, seriam imperceptíveis senão por estas série de solapamentos e terremotos, estas cisões que a fragilidade causa nas coisas. Papeleiro, pessoa-deserta.

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