segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Conexões corporais

Que tecido é esse? Que corpo é esse? Que pele é essa?
Derme sensível, tocada por forças que nossos olhos, blindados como estão, não conseguem ver.
Forças que amassam a pele, dobram o corpo em alguns pontos à medida que torna plano outras dobras.
Lugares são intensificados e outros são desinvestidos.
Que corpos são esses? Corpos não necessariamente orgânicos, funcionais, talvez, quem sabe, um corpo sem órgãos também caiba aqui. Corpos teciduais, feitos de retalhos, e dobrados, redobrados em uma finitude de componentes, mas numa variabilidade de combinações quase ilimitada.
Não é um corpo que busca o ilimitado, não é corpo desejante em se constituir conforme o Modelo, o Homem, ou mesmo Deus, não é um corpo que queira necessariamente chegar a um ponto fixo, e construir sua casa de palha nas dunas de areia da existência.
As torres de outrora desmoronam, desfalecem, esmaecem tijolo a tijolo, erodidos pelas areias do tempo e do campo. Quem saiba ainda restem Eus empapagaiados, em seus poleiros dentro de suas gaiolas, admirando sua biblioteca magistral, os tapetes de animais empalhados, tapetes defuntos, uma lareira queimando lenha e soltando uma fuligem negra, asfixiante e que recobre o ambiente como uma névoa venenosa.
Lá está esse grande Eu em toda sua glória, feito um papagaio em seu poleiro, prisioneiro de uma gaiola que ele mesmo criou, ele se tornou seu próprio algoz. Não deixa de falar de seu projeto para a humanidade, porém jamais em contato com ela, conta verdades que só o são em sua psicose diária da exclusão, exclusão de tudo que difere de sua opinião. É refém de sua própria conduta, é esse homem velho, cada vez mais jovem nas aparências, que transformou seus valores em suas grades, num ímpeto de reafirmar uma identidade moral já perdida.
Não que não haja moral nos tempos agora pós-modernos, mas a dinâmica dela mudou. Não é mais uma moral individual que foi dada a Deus para alguns espalharem, serem seus profetas, seus sacerdotes, transformando todos aqueles que não são tocados por Deus em infiéis, ou no melhor dos casos, existe a conversão religiosa em seu tenebroso sentido: transformar homens em cordeiros de Deus.
Hoje a moral está mais para um fluxo do que um estamento. Não é mais um relâmpago que desce dos céus e queima, devora a terra, mas é um como o leito de um rio, que alarga e afina diante das rochas da existência, rochas das mais variadas texturas: duras e vulcânicas, dispersas e arenosas, rochas mutantes e metamórficas. Nosso corpo faz o rio, nosso corpo afeta e é afetado pelas rochas, em certo ponto somos a rocha. Nossa moral hoje é corporal, é das mãos que fazem, das mãos que curam, é a moral da célula, individual em sua dinâmica sobrevivencialista, mas quando em relação intercelular produz as mais belas formas de vida: de gramas rasteiras a imponentes orvalhos ou delicadas cerejeiras, de baratas, ratos e lesmas a um bem-te-vi, um falcão, um cisne, de gambás a lobos, cães, leões. Da célula ao animal, da célula ao homem.
A célula é finita, tem sua vida datada, e assim que as areias de seu tempo deixarem de cair, ela entra em processo de desintegração, libera de seu ser seus elementos constituintes, que podem vir a ser usados por outras células finitas, que se combinam em profusão de linhas e vertentes, formam tecidos e órgãos, e tecidos e órgãos formam corpos, e corpos em conjunto se combinam mais uma vem: criam o socius, criam a moral, criam o amor.
Cria-se o amor, e com amor se cria. Um amor que não é feito de transcendentais, um amor que em conjugação com corpos que a cada instante não são mais os mesmos, combina-se, cria uma dobra aqui, e acolá estendemos esse tecido corporal. É claro que o amor não é algo fácil, o amor incomoda, e muito.
Não é como as coerções sociais, médicas ou políticas que permeiam nosso caldo de cultura e que não damos tanto importância, e por isso não nos incomodam tanto, nos blindamos desses diagramas, eliminando aos poucos, ou melhor, recalcando, levando para o inconsciente tudo aquilo que não reluz para nós.
Aceitamos fácil que a cultura deva ser de tal jeito, que a sociedade sempre tem e deve ter seus excluídos, que a política é algo feito de cima pra baixo, ao invés de ser horizontal, com a ativação de nossa voz política e retomarmos nossa capacidade de fazer para nós, e não para uma entidade quase divina como o governo. E discutir se o que o médico receita faz bem ou mal, se ele nos trata de forma digna? Pra que isso!
Mas em nossos tempos, quando se fala de amor é difícil não ser afetado. Ou se é apaixonado por ele, ou emite um profundo ódio quando se toca nele. A indiferença existe, em corpos que já não sentem, mas são poucos que trocaram sua pele por uma fina camada de metal, asséptica, lisa, insensível, imagética, ainda são poucos corpos que perderam suas vísceras para adquirir o status virtual da imagem.
O amor quando em profusão toca corpos, libera resistências e as cisões Eu - Outro vão adquirindo um espaço, quem sabe um não-lugar, onde a distinção já não é possível, um ponto onde já não sei mais quem sou, quem você é, um ponto de urgência, um ponto que realiza transformações sutis ou brutais.
Também pelas péssimas experiências amorosas, fazemos de nossa pele uma armadura, vivemos em estado de guerra, alertas ao menor sinal, rigidificamos o ser, e as dobras se tornam nós explosivos, que ao menor toque liberam uma energia difusa, agressiva e dominadora, que machuca a quem toca, a quem está perto, e a si mesmo.
É difícil desapegar-se dessa densa armadura, a erguemos para nos manter estáveis, parados, petrificados no tempo, mas quando a mão do outro chega, com boas ou más intenções, nos desestabiliza, nos retoma ao fluxo do tempo, e nos obriga a sair, mesmo que seja apenas por um instante, da floresta petrificada em que convivemos.
O outro nos toca, tocamos o outro. É uma conexão em que nos misturamos, é a comunicatibilidade dos corpos que não passa necessariamente pela linguagem, nas línguas mais atuais, é um plugar-se em rede, rede de corpos, rede de seres, rede de vidas.
Redes de amor.

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